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Parte 1: Hokusai Manga: Imagens Engraçadas?

マンガは「戯画」か?

Hokusai denominou a coleção mais popular de amostras de desenhos de “mangá”. Embora caracterizada principalmente pela diversidade de temas e pela tradição de pintura, a atenção frequente do público por seus desenhos de caretas e de atividades acrobáticas criou a impressão de que “mangá” era sinônimo de história em quadrinhos ou de imagem engraçada. Entretanto, ao se comparar com as obras do seu contemporâneo, Utagawa Kuniyoshi, fica evidente que as imagens de Hokusai Manga não eram necessariamente humorísticas. No Japão do século 19, foi precisamente o equilíbrio entre o prosaico e o fantasioso, entre o instrutivo e o divertido, que garantiram o sucesso duradouro do Hokusai Manga. Entre os paralelismos com os quadrinhos japoneses atuais, estão, em termos de conteúdo, o interesse em visualizar fisicamente o movimento, e sua ampla circulação tornada possível pela tecnologia de reprodução.

 

Hokusai Manga

『伝神開手 北斎漫画』

Xilogravura em três cores — preto, cinza e cor da pele — e publicada de 1814 até 1878 em 15 volumes costurados e encadernados, o Hokusai Manga consiste em 4.000 imagens e cerca de 800 páginas. [No 6]. A frase que precede seu título, “denshin kaishu” (expressando o espírito, aprendendo o ofício), indica o objetivo didático original da série, que desfrutou de tão grande popularidade a ponto de continuar a ser publicada por quase três décadas depois da morte de Hokusai.

 

Vol. 1: Primeiro mês de 1814 (publicado por Eirakuya, Nagoia)

Vol. 2 e 3: Quarto mês de 1815 (publicado por Kakumaruya, Edo)

Vol. 4 e 5: Verão de 1816 (publicado por Kakumaruya, Edo)

Vol. 6 e 7: Primeiro mês de 1817 (publicado por Kakumaruya, Edo)

Vol. 8: Primeiro mês de 1818 (publicado por Kakumaruya, Edo)

Vol. 9 e 10: Primavera de 1819 (publicado por Kakumaruya, Edo)

Vol. 11: Sem data (publicado por Eirakuya, Nagoia)

Vol. 12: Primeiro mês de 1834 (publicado por Eirakuya, Nagoia)

Vol. 13: Sem data, presumivelmente outono de 1849 (publicado por Eirakuya, Nagoia)

Vol. 14: Sem data (publicado por Eirakuya, Nagoia)

Vol. 15: Nono mês de 1878 (publicado por Eirakuya, Nagoia)

 

Inicialmente projetado para conter apenas dez volumes, durante um tempo, o Hokusai Manga prosseguiu com volumes adicionais devido à enorme procura. Dessa forma, o frontispício do volume 11, que acompanha o título da Parte 1 de nossa exposição, apresenta um menino chinês acrescentando o ideograma 新 (novo) aos 漫画 (manga) [No 5]. O menino está no topo do Deus da Longevidade, que parece pedir desculpas aos eventuais compradores por fazê-los esperar. Ele faz isso por meio de um trocadilho sutil contando com o reconhecimento do leitor dos utensílios colocados no canto inferior esquerdo: uma barra de tinta sumi (sumi, em japonês) no alto, um rolo de papel (makimono, em japonês) no meio, e um leque (sensu, em japonês) embaixo, combinados formando a palavra “sumi-ma-sen” (Desculpe!).

Quando entraram em contato com o Hokusai Manga em fins do século 19, os europeus ficaram fascinados pelas próprias representações, que pareciam oferecer acesso direto ao cotidiano no longínquo Japão. Essa sensação de imediatismo se associava, por um lado, a uma incapacidade subsequente em determinar critérios implícitos para essa enciclopédia pictórica e, de outro lado, à suposição de uma pretensa espontaneidade “oriental”. Em consequência, Hokusai Manga circulou por muito tempo fora do Japão sob o nome de Croquis Aleatórios (Guth 2015: 59). Exposições recentes de Hokusai, entretanto, traduzem a palavra “manga” como “diversos” ou “desenhos variados”, omitindo a referência ao caráter aleatório. Esta reetiquetagem leva em consideração os fatos de essas imagens não terem sido criadas in loco, e de não terem sido concebidas sem a assistência de gravadores e impressores. (Nagata 2011, 2014; Marquet 2007: 15-16).

 

O termo “Mangá

「漫画」=「マンガ」?

A palavra “mangá”, usada aqui no plural mas sem um “s”, foi escrita inicialmente com dois ideogramas sino-japoneses: 漫 (man: diverso, aleatório, incoerente, inconstante) e 画 (ga: desenho em forma livre, imagem). Logo que o termo apareceu em inícios do século 19, foi usado principalmente para indicar uma grande e ampla variedade de desenhos ou um extenso catálogo de motivos (Miyamoto 2003). Imagens com orientação cômica eram mais especificamente chamadas de giga 戯画 ou toba-e 鳥羽絵. Era uma alusão ao abade budista Toba Sōjō (1053-1140), o suposto criador dos Rolos com Animais se Divertindo (Chōjū jinbutsu giga), “toba-e” (literalmente, pinturas Toba) apresentava figuras com faces redondas e membros anormalmente longos [Nos 13-15]. Muitas vezes “toba-e” era usado em vez de “giga.” Embora ambas as palavras já tivessem uma longa tradição no Japão, “mangá” era um termo novo. Contrariamente à crença popular, porém, ele não foi criado por Hokusai. Os historiadores de mangá já em 1928 assinalavam exemplos muito mais antigos do seu uso. (Hosokibara & Mizushima 1928: 124).

Como parte distinta de ukiyo-e, giga ganhou força depois de 1842 quando gravuras de beldades e de atores assim como eróticas se tornaram objeto de restrições mais rigorosas do governo. A série Peixes Dourados de Kuniyoshi (Kingyo zukushi) [Nos 11, 12] foi criada nessa época, embora não necessariamente em reação direta a essas reformas (Iwakiri 2014: 108). Membros da classe dominante raramente eram utilizados de forma explícita como figuras cômicas. Uma exceção aparece numa imagem de página inteira no volume 12 do Hokusai Manga. Ela mostra um samurai fazendo suas necessidades fisiológicas protegido por seus humildes servos [No 8]. Mais frequentemente em vez de ridicularizar diretamente as autoridades políticas, os artistas utilizavam de forma velada recursos de paródia de histórias conhecidas, como fez Kuniyoshi em Suikoden: Urashima Tarō Abre a Caixa do Tesouro (Urashima Tarō tamatebako o hiraku, 1843-47) [No 10]. Na lenda japonesa, Urashima Tarō, um pescador que salvou uma tartaruga, é convidado ao palácio no fundo do mar, onde recebe uma caixa misteriosa como presente, mas quando abre a caixa ao voltar para casa, se torna subitamente em velho. Na gravura de Kuniyoshi, esta lenda é entremeada com o clássico chinês A Margem da Água (Suikoden, em japonês; Shui hu zhuan, em chinês), que se inicia com a libertação de 108 espíritos do mal que estavam mantidos prisioneiros por uma tartaruga. Mas, em vez de uma idade avançada ou espíritos malignos, bons espíritos — com 善 (bem) escrito nos rostos — se elevam da caixa, e expulsam os “malvados” 惡.

Com o aparecimento dos jornais modernos por volta de 1900, o termo quantitativo  “mangá” assumiu o sentido qualitativo significando uma imagem satírica. (Miyamoto 2003: 322). Como um dos primeiros exemplos, esta exposição inclui o primeiro jornal satírico publicado não por europeus, mas por japoneses, a saber, o artista de ukiyo-e Kawanabe Kyōsai (1831-89) e o autor Kanagaki Robun (1829-94). Ambos aparecem na primeira página com seus respectivos instrumentos de trabalho [No 16]. Intitulado Eshinbun Nipponchi, este “jornal ilustrado” de 1874 mistura “Nippon” (Japão), “chi” (terra) e “ponchi” (japonês para Punch, o jornal britânico que serviu de modelo para The Japan Punch de Charles Wirgman, 1862-87). Assim, seu título cheio de trocadilhos indica tanto “Terra japonesa” quanto “Japan Punch” (Duus 2013:319). O termo “ponchi-e” (Imagens Punch) substitui “toba-e” antes que “mangá” assumisse o significado moderno de imagem satírica ou quadrinhos, como significava predominantemente quando “mangá” passou a ser finalmente parte do linguajar cotidiano nos anos 1920.

Durante o século 20, a palavra designava quadrinhos, caricaturas, tirinhas (koma manga), e, finalmente, narrativas gráficas serializadas nas revistas de mangá. Desde os anos 1960, essas narrativas passaram a ser indicadas pela versão da palavra “mangá”, escritas em katakana: マンガ. O termo também era usado para filmes de animação (mangá eiga, TV mangá). Fora do Japão, entretanto, mangá geralmente signfica um tipo de história de ficção em forma de quadrinhos, que integra imagem e texto com a ajuda de uma variedade de balões, pictogramas e linhas modificadas, fontes, e efeitos sonoros apresentados graficamente. Usada num sentido restrito, “mangá” se refere a um estilo específico de ilustração e desenho de personagens.