04

Parte 4: Hokusai Manga: Manual Compartilhado!

マンガは参加型文化!

Embora mais divertida que outras publicações similares do século 19, o Hokusai Manga servia principalmente como um livro de referência para estudantes da arte pictória e de desenho (edehon), incluindo um número significativo de amadores. Seu objetivo inicial era “educar os iniciantes através do espírito das coisas” (Marquet 2014: 340), como o subtítulo “denshin kaishu” associado a uma referência aos tratados de pintura chineses (Marquet 2007: 15). O mestre tinha mais de duzentos discípulos quando começou seu Manga, e seus discípulos mais chegados ajudaram a produzir a série expandida. Ele não era o único artista a lançar esse indicador, e o Manga não era a sua única publicação desse tipo. Mas ela alcançou uma extraordinária popularidade. Entretanto, isto não se apoia necessariamente no conteúdo humorístico. Novas formas de reprodução mecânica inspiravam interesse no desenho e na reprodução de imagens, e ele se adaptava a essa demanda, que era em parte dirigida para a aquisição de conhecimento sobre o mundo através de imagens. (Marquet 2007: 19-29).

O frontispício da Parte 4 de nossa exposição mostra duas imagens prosaicas, que introduzem a perspectiva central do Ocidente, uma delas com foco na tripartição (“uso de duas partes para o céu e a terceira para o chão”); a outra nas linhas de fuga (embora não convergindo ao mesmo ponto) [No 81]. Embora muitas páginas do Hokusai Manga se refiram a narrativas bem conhecidas, outras tantas meramente reúnem várias coisas da mesma categoria sem nenhum propósito, dando uma impressão enciclopédica ou como num banco de dados. Isto se aplica, por exemplo, à página dupla com peixe no volume 2 [Nos 82, 83]. Em contraste à essa listagem prática, as gravuras giga de Kuniyoshi Espíritos dos Peixes (Uo no kokoro, c.1842) [No 85] envolvem o espectador com as expressões faciais exageradas que fazem alusão aos famosos atores de teatro da época, cada um assumindo as características de um “pargo vermelho,” “baiacu,” “peixes chatos,” e assim por diante, de acordo com as etiquetas que acompanham. Outro exemplo contrastante às exposições enciclopédicas de Hokusai, embora não cômicas e se referindo a uma narrativa, é o Oitocentos Heróis do Suikode Japonês: Guerreiro Miyamoto Musashi (Honchō Suikoden gōyu happyakunin no hitori: Miyamoto Musashi, c.1830-33) [No 86] de Kuniyoshi. Intrigado pela visualização das fantásticas criaturas, o artista transpôs o conto chinês para a era Edo do Japão e retratou Miyamoto Musashi matando o tubarão da montanha legendária que comia os homens perfurando seu olho direito com sua lança. A página dupla do Hokusai Manga, colocada no painel à direita da gravura vertical de Kuniyoshi [No 83], apresenta um tubarão parecido no canto superior esquerdo, e no centro do fundo uma baleia que convida à comparação com a que está na Parte 2 [No 44].

Diferente dos primeiros dois pares de imagens no início da Parte 4, a última representa o lado lúdico do Hokusai Manga, mas também chama a atenção para a cultura de citação, ou apropriação, que é característica das ilustrações tanto do último período da era Edo como do mangá contemporâneo. Vinte e cinco anos depois da primeira publicação, um motivo do volume 12 do Hokusai Manga [No 84] reaparece no Dentro do Portão Sujikai de Utagawa Hirokage, que é a 34ª das 50 que formam a série Vistas Cômicas de Lugares Famosos em Edo (Edo meisho dōge zukushi, 1859) [No 87]. Na imagem, um vidente aparentemente malicioso brinca com uma jovem mulher, que não percebe que a lente de aumento que ela admira deforma sua face para os passantes. As gravuras de Hiroshige retratam os espectadores da gravura, enquanto a versão de Hokusai Manga oferece um acesso direto, tornando o observador externo da imagem o espectador da pequena cena.

 

Manuais de Mangá

Como um indicador pictórico a ser compartilhado entre os seguidores, a compilação de Kokusai lembra os manuais de “Como Desenhar Mangá” que vêm fazendo uma parte notável da cultura de mangá no Japão desde os anos 1950 e o ambiente do chamado Global Mangá que se desenvolveu a partir dos anos 2000 em diante (cf. Bainbridge & Norris 2010). Em comparação com outros tipos de quadrinhos, o mangá contemporâneo passou a ser reconhecido no exterior como um convite evidente aos leitores para se tornarem criadores copiando seus mestres. Em reconhecimento desse fato, nossa exposição justapõe imagens famosas do Hokusai Manga – as caretas [No 88] e a luta dos dedos [No 89] – com páginas similares dos tutoriais de mangá publicados entre o início dos anos 1960 e o início dos anos 2000, alguns dos quais por pioneiros famosos como Osamu Tezuka (1928-89) [Nos 90; 97] e Keiko Takemiya (1950-) [No 95]. Estes poucos exemplos já atestam a importância da modularização do mangá moderno. Enfatizando a diferença entre a arte de pintar e as narrativas gráficas, no seu Colégio Mangá (1950; o primeiro livro a aparecer no painel Manuais de Mangá), Tezuka antecipou uma compreensão dos elementos pictóricos do mangá como “algo como hieróglifos” ou signos a serem lidos mais do que vistos. Para narrativas longas, a codificação era vista como vital. Isso tornou os visuais de mangá replicáveis e compartilháveis. Mas isto não quer dizer que o resultado foi a uniformidade. Desde os anos 1950, o mangá produziu uma variedade visual excepcional a respeito dos leiautes de painéis [No 96], balões de texto [No 97], e onomatopeias (isto é, a visualização dos sons audíveis e inaudíveis, frequentemente integrados no plano da pintura num grau que torna difícil as edições totalmente traduzidas) [No 98]. O mangá também é identificado por um uso extensivo de retículas, ou seja, folhas adesivas, nas quais padrões de pontos e linhas eram gravados antes do advento da digitalização. Empregadas pelos artistas japoneses desde os anos 1950 e acessíveis para os principiantes a partir de fins de 1980 em diante, as retículas prontas evocam uma aparência “industrial” nítida que convida tanto à participação como à rejeição, dependendo da noção do leitor de originalidade e autoria. Da perspectiva histórica, é interessante notar que até os anos 1980, os tutoriais de mangá japoneses priorizavam técnicas de narrativa sobre a habilidade de ilustração. As publicações de Shōtarō Ishinomori (1938-98) foram especialmente influentes nesse aspecto [No 99]. O seu Uma Cartilha para os Artistas de Mangá (Shōnen no tame no mangaka nyūmon, 1965) aparece à direita do painel de Manuais de Mangá. A propósito, o menor livro no painel esquerdo, a brochura em branco e amarelo, foi escrita por Kotobuki Shiriagari que contribuiu com alguns croquis de personagens assim como dois rolos originais para esta exposição.

 

Mangá feito por Fãs

Coleções de amostras e instruções desempenharam um papel crucial no aumento de publicações de mangá feitas por fãs (dōjinshi, em japonês), que ganharam impulso em conjunto com a disseminação de novas tecnologias, de impressoras a dispositivos digitais e a internet. Trabalhos autopublicados cresceram para um campo cultural e econômico significativo desde a primeira convenção somente de fãs realizada em Tóquio em 1975. Organizada por e para fãs de todo o Japão, o mais antigo e maior desses eventos, o Comic Market (abbrev. “Komike” or “Comiket”) acolheu milhares de estandes operados por artistas dōjinshi individuais ou grupos, os chamados “círculos”, e atraiu até 500 mil visitantes, tanto nacionais como estrangeiros. Nos últimos anos, a interrelação entre os dois domínios de mangá, indústria e cultura de fãs, alcançou um nível que não mais permite que os últimos sejam caracterizados como de pequena escala, amadorístico, ou inteiramente não comerciais, pelo menos não no Japão.

Nossa exposição termina com dois exemplos que se iniciaram no âmbito dos fãs. Sob o nome de Mitsuko, Sawa Sakura publica online tirinhas verticais de artistas famosos de ukiyo-e (→cf. No 50), algumas das quais foram lançadas em forma de livro. A página dupla apresentada aqui representa uma briga entre Hokusai (o homem de cabelo ralo e pouca roupa no primeiro painel no lado direito superior) e Bakin (o homem com cabelo arrumado no segundo painel; →cf. Nos 61, 62) assim como a reconciliação entre os dois mais tarde [No 102]. Insatisfeito pelo fato de que Hokusai, “um mero artista” refez um desenho feito por ele, o autor Bakin quer saber o por quê (no segundo painel da segunda tirinha à direita). Hokusai, abatido, responde, “Mas você não é bom nisso…” no quarto painel dessa tirinha, e ele também se desculpa, antes de empregar sua “técnica secreta” 北斎秘技 (cf. No 28) nos dois últimos painéis da terceira tirinha. Isto acaba se tornando uma “consolidação de amor fraterno”, como a imagem sem moldura do seu abraço mostra no canto esquerdo do alto. Por causa do forte abraço, Bakin começa a suar, se perguntando no último painel (no balão da esquerda), “Por que eu sempre me deixo ser enganado dessa maneira?”, enquanto Oei sorri da infantilidade do homem. A ilustração colorida acima da página dupla monocromática, que é a terceira das quatro páginas precedendo o começo da edição do livro, apresenta Utamaro no alto à esquerda e Hokusai embaixo no centro, os dois cercados por admiradores jovens que exprimem sua reverência por meio da palavra “sensei” (mestre).

Hokusai-sensei!! (Mestre Hokusai!!) é o título real do mangá que Mitsuru Kido serializou desde 2010 em ARIA, uma revista mensal com tiragem de cerca de 37.000 cópias. Houve também postagens online em pixiv, mas essas não eram idênticas às do livro, segundo o artista. Enquanto a maioria dos atuais dōjinshi vêm com ilustrações aprimoradas em papel brilhante, a aparência feita à mão de Mestre Hokusai!! tansmite amadorismo. Na página 14 do livro, Kido explica sua relação com o mestre num texto escrito à mão, colocado acima da imagem de Hokusai se olhando num espelho e se perguntando, “Por que eu tenho um pincel grudado na minha cabeça?” O próprio texto é o seguinte:

 

Eu e Hokusai

[Katsushika Hokusai] Sem exagero, posso dizer que esta é a pessoa por quem eu tenho o mais profundo respeito. Entretanto, no meu trabalho, ele tem uma fase difícil, dizendo coisas indecentes, se tornando um criminoso, sendo agredido por seus discípulos, morrendo. Bem, quem sabe não seria uma má sorte que você tenha sido colocado em tão alta estima por mim e deixado as coisas acontecerem, mestre! Não há nada que se possa fazer.// Hokusai é famoso por suas paisagens, como as Trinta e seis Vistas do Monte Fuji, mas eu prefiro suas ilustrações para livros de histórias, o Hokusai Manga, seus livros de referência pictórica e suas pinturas (especialmente no seu período final). Meu favorito entre todos é o Tigre Velho na Neve. Não conhece? Procure no Google.// Enfim, conto com você, Mestre Hokusai.

Muitos artistas dōjinshi têm familiaridade com Hokusai e seu Manga. Mas suas obras —assim como as contribuições originais na Parte 5 — sugerem que não existem semelhanças estéticas que associem o Manga ao mangá contemporâneo. Além disso, ao reverenciar o caráter profissional do mestre fazendo dele um personagem de mangá, o que passa para o primeiro plano é o potencial cultural inerente ao desenhar e compartilhar imagens populares, a natureza altamente participativa de ambos os tipos de mangá. Precisamente, este aspecto cultural, e como tal invisível, distingue a exposição Manga Hokusai Manga das tentativas anteriores de aproximar por um lado o mangá contemporâneo e, por outro, o mangá de Hokusai. Em relação ao mangá contemporâneo, a Fundação Japão já produziu duas exposições — a pioneira Manga: Quadrinhos Curtos do Japão Moderno (Europa, 1999-2003), com curadoria pelos críticos de mangá Fusanosuke Natsume e Atsushi Hosogaya, e Realidades do Mangá: Explorando a Arte dos Quadrinhos Japoneses de Hoje (Asia, 2010-11), concebido pelo curador de arte contemporânea versado em mangá Mizuki Takahashi. Ambos se preocupavam com a natureza narrativa dos mangás e como reuni-los no espaço da galeria, que necessariamente privilegia o ver sobre o ler. Em ambos os casos, as obras individuais de mangá eram o centro das atenções, representando as narrativas dos artistas na primeira exposição e, mundialmente, na segunda. Em relação a Hokusai e seu Manga, por outro lado, nossa exposição não toma uma perspectiva histórica da arte, ou seja, ela não destaca o próprio mestre, a produção real de seu Manga, e o significado cultural que os motivos nas obras representam. Manga Hokusai Manga tem origem num discurso amplamente difundido, a saber, a afirmação que Hokusai Manga eram improvisados croquis espirituosos que deram origem ao mangá contemporâneo. Na maior parte, ela oferece a oportunidade de explorar as propriedades estéticas do mangá contemporâneo em contraste com a suposta tradição, considerando o desenho dos personagens, a narrativa pictórica e os elementos específicos dos quadrinhos como os balões. Nenhum quadrinho de um painel ou quadrinhos de jornal de quatro painéis, que fazem parte do mangá moderno, ou as “histórias em mangá” das revistas especializadas nelas, têm prioridade nesta exposição de acordo com a ideia predominante dentro e fora do Japão. Enquanto não faltam sutilezas a essas narrativas gráficas serializadas, elas mostram inclinação à paródia subcultural mais do que uma sátira contracultural, especialmente nos últimos anos. O assunto de humor no mangá, entretanto, mereceria um projeto por si só. Influenciado estruturalmente pela experiência de ler as narrativas gráficas modernas do Japão, Manga Hokusai Manga dá ênfase em como as coisas são representadas, que funções da narrativa os elementos visuais assumem, e o que os leitores podem fazer com isso. Passando das qualidades imanentes ao objeto para os usos sociais, finalmente chegamos ao fenômeno dos leitores que se tornam criadores como o menor denominador comum entre ambos os tipos de mangá. Ao mesmo tempo reconhecendo a dificuldade em generalizar sobre cada tipo de mangá, esta exposição tenta ser uma perspectiva sobre os seus consumidores e, implicitamente, sua medialidade, uma perspectiva que chama a atenção para as práticas de leitura (ou de observação, no caso mais antigo), desenho e compartilhamento.