4. Palavras do Tradutor
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ANDREI CUNHA
É tradutor literário de japonês e professor de Língua e Literatura Japonesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. fez graduação e mestrado na Universidade de Hitotsubashi, em Tóquio, no Japão, onde viveu de 1994 a 2001. Traduziu A gata, um homem e duas mulheres (2016) e A ponte flutuante dos sonhos (2019), de Jun’ichiro Tanizaki. Participou do projeto Tradução em Foco, com texto sobre tradução poética japonesa.
Tanizaki, uma polifonia sensorial
Traduzir Tanizaki é um imenso prazer. Sempre que abro uma página a esmo de uma obra dele, sinto a mesma admiração: é um texto elegante, culto, orgulhoso de seu brilho, com uma superfície clara e precisa. Mas a aparência de clareza encerra camadas subterrâneas: Tanizaki usava a intertextualidade como uma ferramenta de caracterização de personagens e de lugares. Ele era também um mestre do não dito, e muitas das suas histórias nos deixam com a impressão de que o mais importante precisa ser adivinhado, um pouco como no Machado de Assis contista. Os seus narradores são pouco confiáveis, e somos obrigados a ler nas entrelinhas aquilo que é “mentira” dentro da “verdade” da história. Além disso, Tanizaki dominava como poucos aquilo que Bakhtin chamava de “a polifonia do romance”. Um único parágrafo pode nos levar para dentro do monólogo interior de mais de uma personagem, com o narrador onisciente fazendo as vezes de um ventríloquo do discurso indireto livre. Essas passagens são especialmente difíceis de traduzir, pois a língua japonesa, no quesito “sujeito da frase”, consegue ser bem mais ambígua que o nosso português…
Eu traduzi três novelas de Tanizaki para a editora Estação Liberdade. A primeira foi A gata, um homem e duas mulheres (2016), cujo processo de tradução foi único: minha colega Tomoko Gaudioso leu o livro em aula com um grupo de alunos, que depois trabalhou comigo na tradução. Nada ficou sem discussão: cada frase foi dissecada exaustivamente em nossas reuniões, com intervenção ativa de todos. Gosto muito do estilo que conseguimos dar ao texto final — charmoso, cômico e comovente, com forte caracterização das personagens. É muito raro encontrar esse tipo de tradução coletiva no mundo editorial no Brasil. Acho que devia haver mais livros traduzidos em grupo, pois o tradutor, figura normalmente solitária, pode também brilhar muito em equipe.
Esse mesmo grupo de alunas realizou, comigo, uma leitura conjunta da edição portuguesa de O Romance do Genji, um projeto que durou dois anos e rendeu uma tradução do capítulo 34 (“Os jovens brotos”) da obra de Murasaki Shikibu, publicado na revista Nota do Tradutor em 2012 (link abaixo). Todo esse trabalho de leitura e análise veio muito a calhar quando traduzimos, desta vez em trio, a novela A ponte flutuante dos sonhos (2019), obra que Tanizaki escreveu após terminar a sua tradução para o japonês moderno de O Romance do Genji. A “ponte flutuante dos sonhos” que dá título à novela é o nome do último capítulo do Genji. O texto de Tanizaki demonstra um impressionante poder de síntese de diversos temas que ele foi buscar no texto da Antiguidade.
A ponte flutuante dos sonhos tem inúmeros elementos autobiográficos: a propriedade em que o narrador vive é muito semelhante à residência de Tanizaki em Quioto (que hoje é um museu). A esposa de Tanizaki foi obrigada a fazer um aborto nessa mesma época, e uma das explicações propostas pelos estudiosos da sua vida é de que foi Tanizaki que decidiu que ela não teria filhos, pois ele desejava tê-la apenas para si. O fantasma desse filho que ele não teve — ou não quis ter — assombra seus diários da época, e pode ter sido transfigurado para a narrativa na forma do irmão que o narrador perdeu.
Nosso trio de tradutores também traduziu, na mesma época, a novela Retrato de Shunkin, que foi publicada pela Estação Liberdade junto com A ponte flutuante dos sonhos. Retrato de Shunkin é uma meditação filosófica sobre a verdadeira natureza do êxtase; como em outros textos do mesmo autor, a figura do artista e a figura do cego são postas lado a lado como diferentes faces da comunhão com a essência do belo. Na tradição japonesa, o músico ou poeta cego tem lugar de destaque, em especial os monges-bardos que criaram a vasta História dos Heike (épico do século XIV). Tanizaki retoma esse elemento histórico e o recria à sua maneira, dando ênfase a uma espécie de sensorialismo que vai além do erótico, sugerindo que o estímulo intenso dos sentidos levaria a uma espécie de contato direto com verdades absolutas, de difícil compreensão para os que veem.
Muitas histórias de Tanizaki propõem uma idealização da figura do artista, atrás da qual é possível entrever o próprio escritor, na maneira estilizada como ele gostaria de ser visto pelo mundo. Na sua concepção, digamos, decadentista, o autor tem permissão para se entregar ao hedonismo, para embriagar os próprios sentidos com os estímulos sensoriais da natureza, do erótico, do luxo e da arte. O Japão de Tanizaki está repleto de espíritos, textos antigos e fantasmas, que muitas vezes são mesmo capazes de ditar as ações das personagens.
OBRAS TRADUZIDAS
Cem poemas de cem poetas – a mais querida antologia poética do Japão. Porto Alegre: Bestiário, 2019. 266 p.
INOUE, Yasushi. O Castelo de Yodo. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.
MURASAKI, Shikibu. O Romance do Genji — Livro XXXIV: Os Jovens Brotos. Tradução de Andrei Cunha, Maria Luísa Vanik, Lídia Ivasa e Clicie Araújo. (n.t.) revista literária em tradução, v. 5, p. 336–358, 2012.
NAGAI, Kafu. Guerra de Gueixas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
NAGAI, Kafu. Histórias da Outra Margem. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.
Poemas do Japão antigo: seleções do Kokin’wakashû. Porto Alegre: Bestiário, 2020.
SEI, Shônagon. O Livro de Travesseiro. Porto Alegre: Escritos, 2008.
SHIKI, inventor do haicai moderno. Porto Alegre: Bestiário, 2021.
TANIZAKI, Jun’ichiro. A Ponte Flutuante dos Sonhos seguido de Retrato de Shunkin. Tradução de Andrei Cunha, Ariel Oliveira e Lídia Ivasa. São Paulo: Estação Liberdade, 2019. 160 p.
TANIZAKI, Jun’ichiro. A Gata, um Homem e duas Mulheres, seguido de O Cortador de Juncos. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
* Agradecimento especial ao Prof. Dr. Andrei Cunha, pela valiosa colaboração de sempre!
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