1. Para começo de conversa…

Dossiê Literário > Dossiê – A tradução na formação da tradição japonesa > 1. Para começo de conversa…

A tradução é um fenômeno presente desde o princípio das civilizações, sendo visível no surgimento de praticamente todos os sistemas literários do mundo. Quando tais interferências não são tão evidentes, isso se deve provavelmente ao fato de muitos relatos e histórias terem sido perdidas ou serem inalcançáveis pelo tempo.

Em geral, o termo “tradução” é usado para se referir à tradução de obras literárias entre idiomas distintos, sem contudo se limitar a esse tipo de tradução; afinal, a tradução ocupa também diversos outros espaços — por exemplo, a tradução intersemiótica, que lida com diferentes mídias, como o cinema e o teatro; a tradução intralingual — aquela que ocorre dentro de uma mesma língua; ou a tradução técnica — que engloba a tradução de textos das mais diversas áreas de conhecimento, seja das ciências humanas ou exatas. No caso da tradução interlingual, a mais corriqueira para a maioria das pessoas, podemos então pensar nas obras de literatura japonesa traduzidas para a língua portuguesa, e que vêm ganhando cada vez um espaço maior no mercado editorial, com traduções de obras clássicas, modernas e contemporâneas, dentre prosa, poesia, contos, romances e ensaios, particularmente na última década.

Pensando então no espaço que a tradução vem conquistando, é interessante pontuar a área acadêmica dos Estudos de Tradução. Academicamente, os Estudos de Tradução são recentes quando comparados a áreas como a Linguística e a Literatura; contudo, eles ajudam, por exemplo, a pensar o fenômeno da tradução e a compreender o movimento tradutório que ocorre nos mais diversos sistemas — e entre eles. Os Estudos de Tradução não abarcam apenas a tradução literária, e academicamente, suas subáreas são tão vastas quanto as de outras grandes áreas de Letras. Contudo, o meu trabalho e discussão, apesar de conversar até certo ponto com outros tipos de tradução, possui um foco historiográfico e literário.

Como uma área que, como um todo, vem ganhando maior alcance, tanto no Brasil quanto no Japão, pensá-la nesses contextos se torna cada vez mais urgente. Assim sendo, pretendo introduzir aqui a discussão que iniciei em A tradução na formação da tradição japonesa: um panorama sobre tradução até o período Meiji, ensaio publicado pela editora Bestiário de Porto Alegre em março de 2020. O livro nasceu da pesquisa realizada no meu último ano de graduação, e busca ligar alguns pontos que comecei a questionar durante meus estudos de língua japonesa e tradução literária. Grandes termos, como literatura, tradução, escrita e história contornam essa conversa. Pensar esses tópicos em separado foi por muito tempo o habitual; contudo, ao buscar encaixá-los e ver como eles se comunicam e constroem juntos um todo que compõe a nossa realidade, conclusões interessantes podem surgir.

 

Foto: Nathália da Silveira Martins.  Disponível para compra Bestiário.

 

Assim como qualquer história, preciso partir de algum lugar. De forma alguma é o único meio de iniciar essa conversa, porém, é uma maneira que encontrei anos atrás ao tentar encaixar essas pecinhas que tanto me intrigavam. Quando olhamos para a prateleira de uma livraria no Brasil, em geral, grande parte das obras expostas é de obras traduzidas. E se formos pensar no consumo e no conhecimento geral de literatura, à parte do cânone brasileiro por vezes estudado nas escolas, a maioria das obras conhecidas e lidas pelo leitor brasileiro é tudo aquilo que entra no rótulo de “literatura estrangeira”. Há alguns motivos para isso, e eles não são exclusivamente literários, sendo também muito ligados à política e economia. Então, ao pensar nas hierarquias que existem no mundo, e em consequência também na literatura, a dicotomia centro/periferia se mostra muito útil. A analogia é utilizada em diversas áreas: os centros são os eixos que, a rigor, ditam as regras; e as periferias, aquelas áreas que obedecem. Não é uma máxima: ela é na verdade bem maleável; contudo, serve como início de conversa. Partindo então da ideia das hierarquias que operam no mundo, de forma global, temos, hoje, os Estados Unidos e a língua inglesa como grande centro literário — no passado esse lugar tendo sido ocupado pela França —, e sendo assim, tanto o Brasil quanto o Japão são periferias. Obviamente, há especificidades para cada um dos casos, mas, para fins literários, ambos os países ocupam um lugar mais à margem. Para Itamar Even-Zohar, teórico israelense conhecido pela Teoria dos Polissistemas, a tradução assume um papel central sob determinadas circunstâncias, sendo uma delas, dentro de sistemas literários periféricos.

Assim sendo, como periferias, a tradução teve — e ainda tem — uma importância muito grande tanto no Brasil quanto no Japão, sendo a quantidade de obras estrangeiras nas prateleiras uma das formas mais visíveis disso. Partindo então desse pressuposto, podemos nos deslocar para a parte principal desta conversa.

 

 


 

<< Dossiê – A tradução na formação da tradição japonesa // 2. A história da escrita japonesa é uma história de tradução >>