2. A história da escrita japonesa é uma história de tradução

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Se o Japão é uma periferia literária, logo, a tradução deve ocupar um papel de grande importância na história da literatura do país. Mas como averiguar isso? Eu escolhi olhar para a história da escrita japonesa. Essa história não é apenas uma história de escrita, mas também de relações exteriores e de trocas culturais. Como, então, se deu essa história? Como foi que a escrita japonesa se tornou o que é hoje? Para explicar isso, é preciso não só olhar para a escrita, mas para a história; a história do país e de suas relações com outros locais ao longo dos séculos. Assim, a história da escrita, perceptível através da história literária, social e política, toma forma e resulta no que temos hoje — uma história que só foi possível através da tradução, ou das traduções.

 

PRIMEIRO MOMENTO: O INÍCIO DE UM LONGO PROCESSO

A escrita passa a se desenvolver no Japão no século V, apesar do contato com o continente (em específico os territórios hoje conhecidos como China e Coreia) já existir há alguns séculos. Assim sendo, o início da escrita se dá pela adoção de caracteres advindos das capitais das dinastias chinesas, chamados em japonês de kanji (漢字), devido ao apreço pela cultura da nação já estabelecida. Contudo, a gramática e a fonética entre os idiomas chineses e a língua japonesa são muito distintas. Logo, desafios seriam inevitáveis.

Assim como a língua portuguesa ainda hoje passa por acordos ortográficos devido ao uso de um sistema de escrita que não foi pensado especificamente para o português, a língua japonesa também teve de se adaptar ao adotar um sistema de escrita estrangeiro. Porém, como as diferenças não eram apenas fonéticas, devido ao caráter também semântico e gramatical dos caracteres chineses, a problemática está em uma escala maior.

Devido a essa discrepância linguística, os registros mais antigos que temos da literatura japonesa, datados do século VIII, durante a era Nara (710–794), o Kojiki e o Nihonshoki, foram escritos utilizando os man’yōgana, uma forma anterior aos kanahiragana e katakana — que conhecemos hoje, que se valiam foneticamente dos caracteres chineses. O Kojiki, de 712, possui um formato mais doméstico, com o objetivo de registrar as origens do Japão para a posteridade, e foi escrito “na pura língua de Yamato, mas transcrito em caracteres chineses.” (FRÉDÉRIC, 2008, p. 682). O que isso significa? Que o Kojiki foi escrito em língua japonesa falada — Yamato sendo a forma antiga de se referir ao arquipélago — registrada a partir da fonética dos caracteres chineses. Já o Nihonshoki, do ano de 720, foi escrito em “uma mistura da prosa do chinês clássico com a poética do japonês antigo” (MIYAKE, 2003, p. 28, tradução minha), a fim de mostrar a “países estrangeiros — principalmente a China — que o Japão foi bem sucedido em adotar a cultura daquele país de uma maneira minuciosa” (SEELEY, 1991, p. 47, tradução nossa).

Uso de kanji no Kojiki. O Kojiki foi originalmente escrito usando caracteres chineses (aqui, em tamanho maior, escritos com pincel mais grosso) e um idioma que é uma combinação de japonês e chinês. Note que, em paralelo ao texto em kanji, há guias de leitura em katakana.
Fonte: THE SCHØYEN COLLECTION , OSLO. Edição de 1803.

 

Centro e periferia são posições que mudam com o tempo, e, nesse momento, o centro do mundo em que o Japão tinha acesso era o que hoje conhecemos como China. Mas o que essas relações têm a ver com tradução? Como foi comentado, as línguas dos dois locais desde sempre foram muito distintas, então o movimento de apropriação dos caracteres chineses desde sua base foi um processo análogo à tradução. Por assim dizer, a alta classe japonesa, sem ter uma forma de registrar sua história e estrutura a não ser por via oral, aprendeu, de acordo com os relatos do Kojiki e do Nihonshoki, com um erudito vindo de Baekje (um dos antigos Três Reinos da Coreia, junto de Silla e Goguryeo), que trouxe o confucionismo e os caracteres chineses ao Japão, e teve que adaptar seu idioma, até então exclusivamente oral, para a escrita. É algo difícil de imaginar quando se vive em uma sociedade cuja presença da escrita é tão presente e antiga como a nossa. Mas nesse que podemos chamar, grosso modo, de um primeiro momento da escrita japonesa, os registros literários foram feitos de formas diversas e experimentais, e são tão distantes do que hoje é a língua japonesa escrita, que para a maioria das pessoas só é acessível através de traduções para japonês moderno (um dos casos de tradução intralingual que comentei anteriormente). Como traz o teórico japonês Katō Shūichi, antes da elaboração dos silabários kana, a escrita japonesa era realizada pela utilização dos man’yōgana, ou por uma tradução da língua chinesa, utilizada de forma japonesa.

 

Além de usar os caracteres chineses para escrever na sua própria língua, o japonês também elaborou um método de leitura de prosa e poesia chinesa usando marcas de leitura a fim de indicar como reorganizar sentenças de modo que a ordem das palavras ficasse mais próxima ao japonês e fornecer comentários sobre inflexões (japonesas) e terminações de palavras. Esses métodos de ‘traduzir’ a língua chinesa também foram usados na poesia e prosa japonesa. Como consequência, do século VII ao século IX, a literatura japonesa era escrita em duas línguas, a japonesa e a chinesa (ou ao menos uma versão japonesa do chinês). (KATO, 1997, p. 13, tradução e grifo meus)

 

Esses exemplos de diferentes formas de escrita permanecem não só na prosa, como os casos anteriores, mas também na poesia, a exemplo da primeira antologia de poesia japonesa, o Man’yōshū, compilada também no século VIII. Não só na escrita, que também difere por utilizar não somente dialetos centrais da corte, o Man’yōshū possui um valor tradutório muito grande, como traz o teórico estadunidense Donald Keene (1987):

 

Os japoneses começaram a traduzir praticamente assim que passaram a registrar a sua língua com os caracteres emprestados da China. A influência da literatura chinesa é visível não somente em traduções declaradas, mas em inúmeros temas e expressões que derivaram diretamente de exemplos chineses. Os poemas em louvor ao saquê na antologia Man’yôshû do século VIII são “traduções” de sentimentos chineses familiares, embora não de obras chinesas específicas. Metáforas e analogias, primeiramente traduzidas e estranhas, foram rapidamente naturalizadas, e empréstimos de novas formas poéticas chinesas inspiraram os japoneses ao longo dos séculos. (KEENE, 1987, p. 55, tradução e grifo meus)

 

Uso de man’yōgana no Man’yōshû.
Uma página do Man’yōshū (“Coletânea da Miríade de Folhas”), usando caracteres chineses (aqui, em tinta preta, de tamanho maior) como fonogramas para escrever versos em japonês. Note que, em paralelo ao texto em kanji, há guias de leitura em katakana (caracteres menores, também em tinta preta).
Fonte: Coleção Digital da National Diet Library , Japan.

 

Esses são alguns exemplos que, além de pertencerem ao cânone da literatura clássica japonesa, demonstram também as relações do Japão para com o continente, e o quanto questões políticas e trocas culturais caminham lado a lado.

 

SEGUNDO MOMENTO: UM NOVO PASSO PARA A ESCRITA JAPONESA

Dando um breve salto, no século IX temos o surgimento dos silabários, presentes até hoje na escrita japonesa: o hiragana e o katakana. Símbolos que, diferente dos caracteres chineses, que estão na casa dos milhares, se reduzem a poucas dezenas (atualmente com 48 símbolos base em cada um, representando os mesmos sons). Em virtude do número reduzido, e do menor tempo de estudo necessário para aprendê-los, mais pessoas puderam ter acesso à escrita. Ainda estamos longe de chegar em um momento de letramento da população, mas com os kana, as mulheres da nobreza puderam, então, começar a ler e a escrever. E com isso, temos uma das obras mais aclamadas da literatura mundial: o Genji Monogatari, escrito em hiragana pela dama Murasaki Shikibu no princípio do século XI. A obra, ainda sem tradução completa para o português brasileiro, é tida por muitos teóricos como o primeiro romance da humanidade. É também uma obra amplamente traduzida para japonês moderno, e conhecida e estudada até hoje.

 

Uso de hiragana no Genji Monotagari.
O texto, escrito por uma mulher para o público feminino, foi escrito utilizando hiragana, tendo em vista que as mulheres da corte não podiam aprender a ler e escrever em kanji.
Fonte: Coleção Digital da National Diet Library, Japan. Edição de 1600.

 

Dito isso, os kanji não deixaram de ser utilizados, se mantendo ainda por muito tempo como a língua de escrita oficial da corte, e sua utilização por mulheres permanecia proibida. Contudo, com o passar do tempo, ambos começaram a ser utilizados juntos, com os kana sendo utilizados para flexões e partículas gramaticais inexistentes na língua chinesa, de forma a se aproximar mais da língua japonesa. Nas compilações, antologias, diários e narrativas da época, as misturas seguiram surgindo, pois ainda não havia uma padronização do registro escrito: havia aqueles que escreviam completamente em kanji, outros em kana, alguns com misturas dos dois sistemas. Temos, por exemplo, o Konjaku Monogatari, uma coletânea de contos chineses, indianos e japoneses compilados no início do século XII, e escrita com uma mistura de kanji com katakana. Pelo uso dos kanji na escrita da obra, atribui-se sua autoria a um homem, apesar de não haver certeza.

Nessas conversas, percebemos que a escrita das obras se conecta com tópicos de cunho social, artístico e tradutório. Os escritores da época, assim como os monges, tinham uma formação em grande parte a partir da leitura de obras chinesas — logo, não há como negar a importância que a tradução, ou até mesmo o aprendizado de chinês para ter acesso aos escritos, possuía na formação da tradição japonesa.

 

INTERLÚDIO: UM BREVE CONTATO COM O OCIDENTE

Brevemente, também vale a pena citar o período das Grandes Navegações, e ressaltar um ponto que foge a muitos. No século XVI, portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses chegaram ao Japão e iniciaram diversas trocas comerciais, e inclusive linguísticas. Aqueles advindos da península ibérica, assim como ocorreu na América Latina, buscaram converter a população do arquipélago ao cristianismo. Em pouco mais de 30 anos desde a chegada da Companhia de Jesus, estima-se que 150 mil japoneses fossem adeptos do cristianismo e que houvesse cerca de 200 igrejas construídas. Já em 1602, quase sessenta anos desde a chegada dos portugueses ao país, o número de convertidos no país era próximo de um milhão (SAKURAI, 2013, p. 107). Nesse período, trocas ocorreram, e tentativas de tradução da bíblia foram realizadas. E esse contato explica a presença na literatura japonesa de textos cujo tema seja o cristianismo, como é o caso do conto O Mártir (1918), de Akutagawa Ryūnosuke (1892–1927). Contudo, por questões políticas e religiosas, o cristianismo foi proibido no século XVII, os cristãos caçados e mortos, e o Japão se fechou para o mundo ocidental, mantendo contato apenas com os holandeses, cujos interesses eram exclusivamente mercantis. E assim, o Japão permanece sem saber o que ocorre no mundo por mais de dois séculos.

 

Biombo de Kanō Naizen (1570–1616) representando a chegada de portugueses e espanhóis no século XVI.
Fonte: WIKIMEDIA COMMON.

 

TERCEIRO MOMENTO: A REABERTURA E A MODERNIZAÇÃO

Mas então, quando a escrita japonesa passa pelas mudanças que levaram a chegar ao que ela é hoje? Esse momento é outro de grandes reviravoltas tradutórias, sociais e políticas: o período Meiji. O período Meiji tem por início o ano de 1868 e termina com a morte do imperador Meiji em 1912. Nesse período, o Japão volta a ter contato com o ocidente após mais de dois séculos, com o fim de um sistema conhecido como sakoku (鎖国). Com isso, o Japão recebe muitas informações ao mesmo tempo. É só pararmos para pensar no que havia ocorrido entre o século XVII e XIX: a revolução francesa, o advento da eletricidade, a revolução industrial, além dos avanços em diversas áreas científicas, para citar uma pequena quantidade de acontecimentos.

 

Ukiyoe de Toyohara Chikanobu (1838–1912), representando um baile no Rokumeikan (1888).
Note a presença de vestimentas e arquitetura ocidental poucas décadas após a reabertura do país. Fonte: WIKIMEDIA COMMON.

 

Com a onda de novidades, a tradução tem novamente um papel de extrema importância. A tradução de obras literárias e de áreas como medicina, filosofia e direito trouxe mudanças e abriu debates até então inexistentes; novos movimentos literários surgiram; houve a criação de um ministério da educação, e o ensino passou a ser compulsório a todos; questões acerca de direitos humanos passaram a ser levantadas.

Dentre as obras literárias traduzidas na época, a primeira teria sido Robinson Crusoe, do escritor inglês Daniel Defoe, com uma tradução indireta feita da edição holandesa (que ainda no início do período possuía uma posição de prestígio, sendo substituída pelo inglês nas décadas seguintes), que foi realizada em 1859, porém só passou a circular com a reabertura do país. Obras como Self-Help, de Samuel Smiles, e A Liberdade, do filósofo John Stuart Mill, foram traduzidas com um caráter mais didático do que literário, trazendo questões éticas e filosóficas, fazendo grande sucesso devido à necessidade do conteúdo das obras para uma sociedade em transição. Isso porque o japonês da era Edo (1603–1868), que vivia em um sistema feudal, sem direitos e governado por um governo militar, precisava compreender as possibilidades da modernidade e possuía uma curiosidade muito grande sobre como era o resto do mundo.

Com essas primeiras traduções, o início de um pensar tradutório mais metódico começou a surgir. Porém, ainda não havia nada semelhante a um mercado editorial, e o que se traduzia era muito mais escolha daqueles que tinham conhecimento linguístico para traduzir. Esses muitas vezes amputavam o texto original e mudavam radicalmente partes do enredo ou de personagens, para servir ao propósito de educar o povo sobre determinado tema, como é o caso da tradução de Memórias de um Médico, do francês Alexandre Dumas:

 

A obra de Dumas descreve um charlatão chamado Cagliostro e suas inúmeras peripécias desagradáveis; Sakurada transformou esse personagem obscuro na encarnação dos princípios de liberdade e direitos populares, no grito de guerra do partido do qual era filiado. (KEENE, 1984, p. 64, tradução minha)

 

Somente com o tempo que se passou a exigir mais das traduções e dos tradutores, com um aumento do interesse pela literatura estrangeira, o que culminou na criação de um mercado literário até então inexistente. No período Meiji, a literatura traduzida constituiu grande parte da literatura circulante, fato que apoia a ideia de Even-Zohar, de que uma literatura periférica se ampara e se utiliza muito da literatura traduzida.

Em meio a tudo isso, a quantidade de termos que adentraram a língua japonesa é difícil de contabilizar, e foi nessa época que palavras de origem estrangeira passaram a ser cunhadas em katakana, prática comum até hoje. Termos importantíssimos e muito presentes hoje na língua, como shakai (社会, sociedade), kojin (個人, indivíduo), jiyū (自由, liberdade) e kenri (権利, direitos) são algumas das palavras que passaram a existir na realidade japonesa devido à modernização e à necessidade de mudanças na sociedade feudal que imperava até então. O processo de cristalização dessas e outras palavras é tratado na obra 翻訳語成立事情 (hon’yakugo seiritsu jijō, condições para o surgimento de uma língua tradutória, 1982), do teórico Yanabu Akira (1928–2018).

Ao final do século XIX, a literatura europeia era conhecida por grande parte da população, e diversos escritores da época estudaram línguas estrangeiras, foram à Europa ou demonstravam em suas obras traços da mesma. Havia escritores que inclusive diziam se sentir mais próximos de autores traduzidos como Tolstói, Dostoiévski e Stendhal, do que de escritores japoneses tradicionais (KEENE, 1987, p. 71), pois esses não mais representavam as suas vivências em um período de modernização, presos a tradições não mais presentes no cotidiano e na vida das pessoas. Assim sendo, a literatura traduzida ocupou um lugar importante, e a prática da tradução dentro do que se entende por tradução interlingual passou a se consolidar.

 

 


 

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