3. A escrita japonesa atualmente

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No presente, o Japão possui um sistema de escrita muito distinto do tratado no início deste texto, mas não deixa de ser peculiar em diversos aspectos. É uma língua que se vale de diversas formas escritas para expressar-se. Pensemos no português, por exemplo: utilizamos, em geral, o alfabeto latino e algarismos indo-arábicos. Por mais que tomemos como algo natural e inquestionável, utilizamos caracteres feitos em momentos e locais distintos para ler e escrever na nossa língua materna. No Japão, podemos dizer que a situação é um pouquinho mais complexa. Temos, então, primeiramente os kanji, que vieram de locais diversos do que hoje se conhece por China ao longo de vários séculos; os silabários hiragana e katakana, elaborados no próprio país no século IX para servir melhor à língua já existente; e mais recentemente, não podemos esquecer que também o alfabeto latino e os algarismos indo-arábicos são amplamente utilizados no país.

 

Letreiros em Kabukichō, Shinjuku, Tóquio.
Fonte: WIKIMEDIA COMMON

 

E todo esse processo, que permeia tanto o literário quanto o linguístico, o histórico e o cultural, só foi possível por meio da tradução. Talvez por isso que hoje os Estudos de Tradução sejam uma área de pesquisa proeminente no Japão. Assim como no ocidente, ela só se tornou uma área acadêmica entre as décadas de 1970 e 1980, contudo, é possível encontrar um pensamento tradutório presente mesmo nos textos literários e sobre literatura de diversos escritores. Há também inúmeros casos, desde a reabertura do Japão, de escritores que são também tradutores: seja interlinguais, como Mori Ōgai (1862–1922) e Murakami Haruki (1949–), como também intralinguais, tradutores que recuperam obras clássicas para o japonês moderno, como Yosano Akiko, (1978–1942) e Enchi Fumiko (1905–1986); além de estudiosos de línguas estrangeiras, como Natsume Sōseki (1867–1916) e Akutagawa Ryūnosuke (1892–1927).

Finalizo com um trecho da obra E Depois (1910; 2011), de Natsume Sōseki, em que o narrador traz a opinião do controverso protagonista, Daisuke, sobre a literatura estrangeira que conhecia e lia em seu tempo livre — que era praticamente todo o tempo. Uma das características presentes na obra do escritor, um dos mais consagrados nomes da literatura japonesa moderna, é a discussão sobre o indivíduo que nasceu e cresceu nesse período de transição, com muitos conflitos entre tradição e modernidade.

 

Daisuke entendia que as ansiedades descritas na literatura russa estavam relacionadas ao clima e à política opressiva. Na literatura francesa, eram decorrentes do excesso de adultério das mulheres. E a ansiedade existente na literatura italiana, representada por D’Annunzio, era produto da insatisfação gerada pela ausência de limites, que culminava na decadência moral. E era por isso que, para Daisuke, os escritores japoneses que apreciavam descrever a sociedade apenas por esse ponto de vista não passavam de meros reprodutores de uma literatura importada. (SOSEKI, 2011, p. 77-79)

 

Se você ficou interessado no assunto, recomendo a leitura completa do livro A tradução na formação da tradição japonesa: um panorama sobre tradução até o período Meiji. Nele, além do exposto aqui, trago outras explicações e exemplos, e busco encaixar essas peças de maneira facilmente compreensível mesmo para quem não estuda o idioma.

 

REFERÊNCIAS

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EVEN-ZOHAR, I. A Posição da Literatura Traduzida dentro do Polissistema Literário. Revista Translatio, n. 3, p. 3–10. Porto Alegre: UFRGS, 2012. Tradução de Leandro de Ávila Braga. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/translatio/article/view/34674>. Acesso em: 26 ago 2021.

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KEENE, D. Dawn to the West: Japanese Literature of the Modern Era. Nova Iorque: Owl Book, Henry Holt and Company, 1987.

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MARTINS, N. A tradução na formação da tradição japonesa: um panorama sobre tradução até o período Meiji. Porto Alegre: Class, 2020.

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SUGESTÕES DE LEITURA PARA APROFUNDAMENTO DO TEMA

BATALHA, M. C. O lugar da tradução na formação da literatura brasileira. Alea: Estudos Neolatinos, v. 2, n. 2, p. 47–74. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.

CUNHA, A. S. Orientalismos periféricos: presença literária do Japão no Brasil. In: BITTENCOURT, R.; SCHMIDT, R. (org). Fazeres Indisciplinados: estudos de literatura comparada, p. 13–25. Porto Alegre: UFRGS, 2013.

GENTZLER, E. Teorias Contemporâneas da Tradução. São Paulo: Madras, 2009. Tradução de Marcos Malvezzi.

KATO, S. Tempo e espaço na cultura japonesa. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. Tradução de Neide Nagae e Fernando Chagas.

KOJIN, K. Origins of Modern Japanese Literature. 3. ed. Estados Unidos: Duke University Press, 1998. Tradução de Brett de Bary.

LUCENA, K. Leituras em Constelação: literatura traduzida e história literária. Porto Alegre: Class, 2020.

MARUYAMA, M; KATÔ, S. Hon’yaku to Nihon no Kindai. Tóquio: Iwanami Shoten, 1998.

MORETTI, F. Conjeturas Sobre a Literatura Mundial. Novos Estudos, n. 58, p. 173–181. São Paulo: CEBRAP, 2000. Tradução de José Marcos Macedo.

MURAKAMI, H.; SHIBATA, M. Hon’yaku Yawa. Tóquio: Bungeishunjû, 2000.

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OKAMOTO, M. A influência francesa no discurso brasileiro sobre o Japão: Imigração, identidade e preconceito racial (1860-1945). São Paulo: Porto de Idéias, 2016.

PIGLIA, R. Tradición y Traducción. Nova Jersey: Universidade de Princeton, 2011.

SATO-ROSSBERG, N.; WAKABAYASHI, J. (Ed.). Translation and Translation Studies in the Japanese Context. Londres: Continuum, 2012.

 

 


 

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