RAKUGO

 

Nesta primeira edição da série “WAGEI, a arte da expressão verbal”, trazemos a tradicional arte do RAKUGO, com a Ramune, uma Rakugo-ka (contadora de história) nipo-brasileira que atua no Japão.

Ramune introduz, de forma divertida, o universo tradicional do Rakugo através de sua perspectiva singular, que valoriza sua identidade cultural como nipo-brasileira.

Ela incorpora elementos únicos, como o idioma português e inglês, ao repertório  clássico em japonês, como o “Jugemu”.

Suas inusitadas e cômicas experiências vividas diante das dificuldades no idioma japonês durante sua infância também são tema do “Makura”, uma pequena introdução realizada pela contadora antes da segunda história, também clássica “Manju Kowai”.

As apresentações estarão disponíveis no canal do YouTube da Fundação Japão em São Paulo: https://www.youtube.com/c/FundaçãoJapãoemSãoPaulo.

 

RAKUGO

Suscitar o riso com histórias engraçadas e interessantes – Otoshibanashi (anedotas)

 

 

A arte narrativa RAKUGO consiste na interpretação solo de um narrador que o faz sentado, contando histórias hilárias ou tocantes do comportamento humano. Essencialmente, as narrativas se desenrolam com base nos diálogos dos personagens. Usualmente, o narrador faz uso apenas de um leque e uma toalhinha, e as gesticulações para interpretar diferentemente cada um dos papéis.

As histórias tem sempre um desfecho inusitado e esdrúxulo, chamados de “ochi” ou “sage”. Diz-se que a origem da denominação RAKUGO é literal da junção dos ideogramas “otosu – fazer cair”, e “hanashi – história/conto”, literalmente histórias para fazer cair (…de rir/chorar/emoção).

RAKUGO também é, por vezes, chamado de HANASHI, sendo que aqueles que o fazem são chamados de HANASHI-KA (lit.: contador de histórias).

 

WAGEI, a arte da narrativa popular que se tornou próspera na Era Edo

As histórias hilariantes apreciadas pela alta sociedade, incluindo samurais e nobres, a partir de meados da Era Edo, também caiu no gosto popular dos cidadãos comuns.

Nas grandes cidades como Edo e Osaka, surgiram diversos teatros de variedades, muito próximos de como são os atuais, os chamados “Yose”, originando o ofício especializado da arte de narrar. No decorrer, a interação com o universo de outras artes, como encenação e música, ampliou imensamente o repertório e, assim, deixou de ser apenas a arte das narrativas de histórias cômicas, tornando-se uma arte mais amplamente abrangente.

Com a Restauração Meiji repercutindo sob influência de novos tipos de mídia, como publicações, discos e transmissões, a arte do RAKUGO continuou evoluindo e atualmente representa o gênero WAGEI.

 

 

Peculiaridades desta arte

Composição: MAKURA (preâmbulo) + HONDAI (tema principal) + SAGE (desfecho)

Na introdução do RAKUGO, costuma-se iniciar com uma conversa sobre o cotidiano ou algum causo relacionado ao tema principal, sendo esta parte denominada MAKURA. Ao final da narrativa principal, há o desfecho denominado “OCHI”, também chamado de “SAGE”.

Usualmente, no RAKUGO não se entra no tema principal de súbito, mas se inicia com uma conversa sobre o cotidiano ou uma anedota relacionada ao tema principal, A esta parte, chamamos de MAKURA (lit.: travesseiro/cabeceira), porque “encabeça” a performance de RAKUGO. Nos poemas (WAKA) também se faz uso do chamado “MAKURA KOTOBA”, na mesma linha de pensamento, e é dito que foi esta a origem da denominação. A função do MAKURA é conduzir a audiência naturalmente para dentro do universo RAKUGO. Normalmente os teatros YOSE não costumam divulgar o repertório com antecedência. O motivo disso é que os próprios RAKUGO-KA (artistas narradores), a partir do MAKURA, tentam captar o clima da plateia através das reações iniciais, para então apresentar o tema que mais se adequa àquela audiência. Antigamente, chamavam esta parte introdutória de “interferência”, ou mesmo “colocar obstáculos”… é um artifício importante para o desenrolar da narrativa e seu desfecho. Atualmente, tem se utilizado, também, termos difíceis, como MAKURA, para sutilmente fazer a explicação do mesmo.

Ao final da narrativa, há sempre o “OCHI” ou o “SAGE”, o desfecho com uma piada, um trocadilho ou uma gracinha. Os termos “オチ‐OCHI” e “サゲ‐SAGE”, apesar de terem o ideograma, são escritos em katakana na maioria das vezes.

 

 

As descrições e o desenrolar da narrativa através da composição dos diálogos

Na maioria das vezes, o/a HANASHI-KA (contador/a) vai narrando a história e, ao mesmo tempo, segue interpretando cada um dos personagens que surgem no desenrolar da narrativa.

RAKUGO é uma arte narrativa performática que se desenvolve e se desenrola com base nos diálogos das histórias, interpretado com a ajuda de gesticulações e mímicas. Em contrapartida, no caso de KŌDAN, é a arte da narrativa explicativa na qual se faz a leitura das histórias, em tom explanativo.

Por exemplo, na narrativa KŌDAN:

“Ao olhar bem à frente do caminho, avista-se algo branco parece balouçar. O Kumagoro bate no ombro de Hachigoro… –Olhe lá adiante! … e apontou seu dedo na direção.”

Já na narrativa RAKUGO, a interpretação seria:

Olhe lá Hatsuan! (cutuca o ombro de Hachigoro e aponta ao longe)… Você ‘tá’ vendo um negócio branco balançando lá?…”

“Ahh (responde olhando ao longe)… o que será?”

Entretanto, há muitas ocasiões no RAKUGO em que se faz uso de narrativa com tom explicativo, para provocar um clima de tensão e expectativa na audiência, agregando variações na interpretação. Existe também o RAKUGO denominado JIBANASHI, que consiste em narrativa desenvolvida quase toda em tom explanativo. ‘JI’ é um termo que faz referência ao texto explicativo, uma distinção em relação à parte do diálogo.

 

Descrição distinta dos papéis KAMITE e SHIMOTE

Visto da plateia, o lado direito do palco é denominado KAMITE e o lado esquerdo SHIMOTE. No teatro clássico Kabuki, quando se faz a composição do cenário de uma casa, o hall de entrada fica sempre no SHIMOTE e o KAMITE fica ao fundo da sala. No RAKUGO, adotou-se os mesmos parâmetros de composição.

Em uma cena em que o personagem adentra na casa, o RAKUGO-KA volta-se para a direção do SHIMOTE, ou seja, o lado direito do palco visto pela plateia, gesticulando que está abrindo a porta. Em contrapartida, quando encena sair de dentro da casa, vira-se em direção ao lado esquerdo, que é o SHIMOTE.

Dentro da casa, o KAMITE é a área VIP, na qual se sentam as pessoas de mais idade, de classe alta ou alta patente. Desta forma, no diálogo entre o senhorio e o Hachigoro dentro da casa, o senhorio se encontra no KAMITE. Assim sendo, quando o narrador interpreta o papel do senhorio, ele falará olhando na direção do SHIMOTE, ou seja, para o lado esquerdo do palco visto da plateia. E quando estiver interpretando o Hachigoro, falará olhando na direção KAMITE, que fica do lado direito do palco.

 

Técnicas para estimular a imaginação

A performance de RAKUGO é realizada pelo narrador/a vestido com quimono e sentado sobre uma almofada. O quimono, em comparação com vestes ocidentais, facilita imaginar que seja qualquer vestimenta. Se porventura o narrador vestisse terno, na ocasião que fosse interpretar um personagem feminino, causaria estranhamento na plateia. Além disso, como o/a RAKUGO-KA faz a performance solo, praticamente não há movimentação do joelho para baixo. Assim, ao estar sentado, o olhar dos interlocutores não foca abaixo do joelho do narrador, levando a plateia a focar sua atenção nas gesticulações e expressões faciais. Entretanto, mesmo sentado, isso não impede que o narrador levante os quadris e simule o movimento de andar.

O olhar também exerce um papel fundamental. Ao se mover simulando andar elevando o olhar, passa a impressão de estar subindo a ladeira. Além disso, quando se utiliza o leque para simular uma espada, ao mover o olhar da base da mão que o segura e direcionar o olhar na crescente, consegue passar a impressão de que se está empunhando uma espada bem mais longa que o comprimento real do leque.

Ainda, ao alterar o tom de voz e o ângulo do olhar, facilita ao interlocutor imaginar se o narrador está conversando com alguém próximo ou afastado. Além destas técnicas, há muitos outros artifícios de encenação que ajudam os interlocutores da plateia a trabalharem sua imaginação.

 

Foto: Stéphane Gallay, sous licence Creative Commons (CC-BY)

 

Obras clássicas e novas

A arte narrativa de RAKUGO tem sido legada ao longo de anos por muitos RAKUGO-KAs. Todavia, sempre adaptando os conteúdos, contextualizando ao senso de cada época.

Ainda hoje, perdura como arte popular. Este tipo de RAKUGO é geralmente denominado KOTEN RAKUGO (clássico). Estas obras clássicas de RAKUGO são verdadeiras obras-primas, que foram elaboradas com muito tempo e maestria em retratar a universalidade das emoções humanas e seus sentimentos de alegria, ira, tristeza e prazer.

Em contrapartida, há RAKUGO-KA e escritores que criam novos trabalhos, aos quais denominamos SHINSAKU RAKUGO, ou trabalhos originais, SŌSAKU RAKUGO.

Os trabalhos mais novos são elaborados com base na percepção da atual realidade, o que torna o
entendimento mais fácil e inspira familiaridade.

Além disso, alguns RAKUGO-KA dão ênfase às suas características, criando obras em seu universo próprio, encantando os fãs de RAKUGO. Desta forma, cada RAKUGO-KA faz sua performance captando a reação de seu público e fazendo uso de técnicas e artifícios, interpretando e dirigindo seus papéis e, por vezes, autores de novas obras.

 

Centenas de obras, rico repertório

Há mais de 100 obras em comum nos repertórios de vários RAKUGO-KA. Os personagens retratados ou causos também são realmente variados.

Entre os causos, há aquele que retrata a briga de casal do artesão que mora no cortiço, as dificuldades da labuta no comércio ou a história do senhor feudal metido a sabichão.

Além disso, há repertório com temática sazonal que retrata causos de Ano Novo, de Equinócio, de Hanami (apreciação das cerejeiras em flor), passeios e piqueniques outonais e a correria do final de ano. Existe repertório para cada estação do ano. Há também os aniversários de criança, casamento, festivais, funerais, todas as comemorações e ocasiões importantes em que se reúnem os familiares.

Como personagens das narrativas, há o beberrão, o mesquinho, o atrapalhado e o protagonista presunçoso ao extremo. Há aqueles reais, que existiram de fato, como o Edo-chō Bugyō – o Magistrado de Edo, Ōoka Echizen no Kami, o poeta e bonzo Saigyo, e anedotas de Kōbō Daishi – o Grande Mestre Budista. Nestas obras, o ofício e a personalidade dos personagens são abordados e interpretados por variados pontos de vista.

Fonte: Copyrights©Japan Arts Concil All rights reserved
https://www2.ntj.jac.go.jp/dglib/contents/learn/edc20/index.html

 

RAMUNE

Descendente de terceira geração de japoneses (sansei), nascida no Japão e filha de pais nipo-brasileiros, não sabia japonês quando criança.

Formada pela Universidade de Artes de Musashino.

Encantada pela arte narrativa RAKUGO, em 2017, ingressou com Hayashiya (anterior), tornando-se discípula do RAKUGO-KA Rabuhei (atualmente) como aspirante no caminho da arte RAKUGO, tornando-se a primeira RAKUGO-KA  brasileira nipo-descendente.

Sua estreia aconteceu apenas seis meses depois de ter se tornado discípula de Rabuhei. A oportunidade veio como atração de abertura antes da apresentação principal de seu mestre, para um público de 900 pessoas no Blossom Hall, em Guinza, com a performance de ‘SORAIDŌFU‘, com temática da vida cotidiana.

“Desejo aprimorar um RAKUGO próprio, que somente eu como nipo-brasileira de terceira geração conseguiria”

É com esta determinação que atualmente se apresenta nos palcos de diversos teatros YOSE por todo Japão, apresentando sua performance trilíngue (japonês, inglês e português).

“Há algum tempo, eu também não sabia falar japonês. Mas hoje, o meu trabalho é conversar em japonês. Por isso, fiquem tranquilos, com certeza conseguirão aprender a falar japonês”, faz questão de proferir estas palavras de encorajamento às crianças estrangeiras .

 

As histórias

 

JUGEMU

Desejando saúde e longevidade para o filho que acabara de nascer, este pai vai ao templo consultar o abade para que o ajude a escolher um bom nome para o filho. Este pai, com a enorme lista de palavras auspiciosas sugeridas pelo abade, acaba dando nome ao filho juntando TODAS essas palavras. Graças ao LONGUÍSSIMO nome, talvez a criança cresça saudável em demasia a ponto de se tornar um menino muito travesso. Um dia, ele brigou com um menino da vizinhança e lhe bateu na cabeça, formando um galo, e este foi reclamar com o pai. Narrativa hilariante, que retrata o vaivém da conversa que faz repetir o longuíssimo nome tantas vezes e acaba levando tanto tempo, que o galo gigante da cabeça do menino havia desaparecido antes de concluir a reclamação.

 


 

MANJU KOWAI – Pavor de manju (*bolinhos doces recheados)

Alguns rapazes à toa, sem ter o que fazer, conversam animadamente sobre coisas que não gostam e que lhes causam medo. Aranha… cobra… formiga… em meio à discussão acalorada, chega Tetsu com fama de ser do contra… “Que vergonhoso ouvir esse monte de machões dizendo que têm medo dessas coisinhas… não existe nada nesse mundo que cause medo”, diz. “Tem certeza que nada te amedronta?”, perguntam os rapazes. Depois de um momento pensando… “Na verdade, tem sim…”, confessa Tetsu. “Então, do que você tem medo?”, perguntam a ele, que reponde baixinho… “MANJU. Só de ouvir falar de manju já comecei a passar mal” E vai dormir no quarto ao lado. Os rapazes, que ainda estavam por lá, comentam… “Ele é sempre muito arrogante! Não vamos perder a chance de ameaçá-lo”. E fazem uma vaquinha para comprar o quanto possível de MANJU e colocam os bolinhos doces amontoados na cabeceira de onde dormia Tetsu. Ao despertar, solta gritos de terror de dentro do quarto. “Tenho pavor de manju”, e se deliciava com os MANJUs que adorava… e a cada bocada, gritava… “Tenho pavor de MANJU…” e acabou comendo tudo. Fez-se silêncio, e os rapazes, preocupados, espiam o quarto. Ao vê-lo se deliciar com os MANJUS, finalmente percebem que foram enganados! Irados, perguntam… “Afinal, o que é que te apavora de verdade?” E o dito-cujo, com a boca adocicada demais, depois de se empanturrar com o monte de MANJU, responde… “Bem, neste momento, acho que tenho pavor de um chá verde amargo…” Sendo esse o desfecho da cômica história do astuto velhaco…