1. Introdução

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Quando pensamos em literatura de autoria feminina no Japão é comum pensarmos nas grandes escritoras como Murasaki Shikibu (973 ? – 1014?), que escreveu o famoso as Narrativas de Genji (Genji Monogatari), o romance mais antigo que temos notícia, além de Sei Shônagon (966 – 1017), que influenciou os monges do período Kamakura (1185- 1333) com seu Livro do Travesseiro (Makura no Sôshi) no qual mesclava filosofia à descrição do cotidiano da corte, como também Izumi Shikibu (976? -?)  que com seu diário, o Diário da dama Izumi (Izumi Shikibu Nikki, início do século XI), mesclou vários gêneros narrativos como a poesia, a prosa e a ficção, ou ainda a narrativa de viagem da filha de Sugawara no Takasue (1008? –1059?), o Diário de Sarashina (Sarashina Nikki, 1058-64?), escrito durante a vinda da jovem para a capital Heian, atual Kyoto, no qual a moça descreve suas expectativas sobre a mudança para a capital e o desejo de encontrar um rapaz como aquele descrito nas Narrativas de Genji. Essas obras mais do que revelarem o cotidiano e cerimonial da Corte, traziam também um leque da cultura, reflexões e a descrição da realidade da vida das mulheres daquele período. Em suma, cada qual a seu modo portava uma visão única de um Japão, que ainda hoje é romantizado em mangás, animês e jogos de vídeo game, como um momento glorioso e histórico da nobreza nipônica.

 

Murasaki Shibiku compondo “Genji Monogatari” (“Narrativas de Genji”) Por Tosa Mitsuoki (1617-1691). Final do século 17. Fonte: Wikimedia Commons

 

A produção literária desse período supracitado ficou conhecida como literatura ao estilo feminino (joryû bungaku), isto porque, possuíam uma forma única de escrita – eram produzidas em hiragana, e traziam como temática a descrição do cotidiano feminino. Entretanto, o poeta Ki no Tsurayuki (872-945), no início do século XI escreveu o Diário de Tosa (Tosa Nikki, 935) utilizando-se da voz narrativa feminina para narrar sua viagem do interior de Tosa, atual província de Kôchi, para a capital Kyoto, fugindo da descrição formal de um relatório, descrevendo os sentimentos dos viajantes, os cerimoniais do dia a dia e a tristeza do governador, que embora feliz por estar retornando à capital, se entristecia pelo falecimento da filha que não retornava junto dele.

Para Miner (1968), embora no período Heian, muitos diários tenham sido escritos dando origem ao gênero diaristico (Nikki Bungaku) é necessário diferenciarmos a produção diaristica japonesa da produção europeia como o “journal” e o “diary”. Visto que enquanto o “diary” é um relato criterioso do dia a dia do autor, o “journal” trata de questões públicas na narrativa, com críticas e reflexões sobre o governo, o “nikki” japonês mescla questões privadas, do cotidiano da nobreza, à reflexão de problemas universais. Além disso,

 

A “margem estreita entre a verdade e a ficção” é presumivelmente muito mais estreita, na literatura japonesa.
O que, podemos perguntar, distingue então um diário de arte japonesa de um diário natural? A questão só recentemente foi levantada por estudiosos japoneses, e o próprio conceito de literatura de diários ou diários literários (nikki bungaku) tem apenas cerca de cinquenta anos de idade. Tão forte tinha sido o pressuposto de que os “diários” eram registos reais dos acontecimentos. No entanto, é um fato evidente que a maior parte dos diários clássicos importantes, evitam entradas diárias e relembram, obviamente, o que aconteceu com grande liberdade. A mais recente conclusão japonesa sobre a diferença é, portanto, que embora o diário natural seja um registro de fatos, o diário de arte tem, além disso, um “elemento literário” – mais sentimento, técnica, estilo. (MINER,1968, p.41).

 

O gênero diaristico nipônico, majoritariamente produzido por mulheres, teria como objetivo além de revelar o real cotidiano da corte e da vida das mulheres que serviam a família imperial também gerar por meio da escrita um espaço de desabafo, de expressão da solidão das narradoras, a dependência de seus maridos, e a liberdade para falar o que sentiam. Suas reflexões atingiam não apenas outras mulheres de sua época, mas chegaram com vigor à contemporaneidade, pois sua forma de narrar e temas ecoam nas obras contemporâneas.

A partir do início do período moderno japonês, período Meiji (1868 – 1912), a produção literária feminina do período clássico passa por um processo de canonização da literatura japonesa, a fim de comprovar a força e erudição da nação-estado em formação. Nas palavras de Suzuki (2000),

 

A canonização dos kana nikki das mulheres de Heian ocorreu no contexto mais amplo do processo de construção do moderno estado-nação, do qual a instituição moderna do kokubungaku (literatura nacional e seu estudo) tornou-se parte integrante. (…) A literatura Heian (de) kana, há muito associada à feminilidade, foi designada a base da “literatura nacional” como resultado da noção fonocêntrica de “língua nacional” (kokugo) que surgiu em estreita relação com o movimento genbun-itchi (união das línguas faladas e escritas) e que cada vez mais enfatizava a expressão direta e não mediada. (p.72)

 

Isso significaria que a autoria ou o conteúdo social dessas obras ficaria em segundo plano, destacando apenas a escrita dessas produções, visto que o objetivo do governo era construir e solidificar uma literatura nacional. Obras reconhecidas como a antologia Kokinshû (Coletânea de poemas de outrora e de hoje, 905) e o Man’yôshû (Miríade de Folhas, 759) que foram escritas e compiladas em kanbun, chinês clássico, foram eliminadas dessa organização literária, pois não representariam um espírito nacional que o Japão buscava enfatizar. Ainda segundo Suzuki (2000), os diários femininos escritos em kana (hiragana) valorizavam dois eixos, como “expressão direta da emoção e como um passo crítico em direção as Narrativas de Genji, o romance realista” (p. 72).

Seguindo esse pressuposto o governo japonês enfatizaria, principalmente para governos ocidentais, um histórico literário “original” e a expressão de “eu genuíno” construído sem influências estrangeiras. É importante deixar claro que, essa escolha visivelmente política da construção de um cânone literário baseado em textos filosóficos, em detrimento de textos ficcionais como as “Narrativas de Genji”, e textos escritos em kanbun, não tencionava a valorização da autoria feminina, mas sim buscava enfatizar “a expressão “sincera” de si mesmo”, como um protótipo genuíno da literatura moderna, dita como “literatura pura”, que seria representada pelo “Romance do Eu” (Shi Shôsetsu).

A maneira como se deu a construção da um sistema literário autóctone baseava-se em definições literárias europeias, em que a literatura tipicamente nipônica seria caracterizada por uma “mentalidade japonesa “elegante e graciosa” (yûbi) em contraste com o “heroico e grandioso” (gôitsu, yûsô) que são características da literatura chinesa ou o “preciso, detalhado, e exaustivo” (seichi) natural da literatura ocidental” (SUZUKI, 2000, p. 75). Consequentemente, o realismo contido nas Narrativas de Genji, por exemplo, seria substituído e difundido como a literatura nacional japonesa real. A graciosidade e a sensibilidade, como podemos observar na atualidade, ainda é algo visto como tipicamente nipônico e feminino, contrapondo-se a literatura feminina moderna, e até mesmo ao “Romance do Eu”.

Ao reforçar uma literatura “sensível e graciosa”, associando-a a um feminino frágil e onírico, o governo priorizava uma identidade nacional onde o militarismo de anos posteriores, confrontos civis e pobreza também eram apagados da “história” social.

 

Apesar da forte ambivalência que esses estudiosos de Meiji mostraram em relação à sua própria caracterização da literatura nacional como “elegante e gentil, excelente na graça, mas sem magnificência ou grandeza heroica”, e apesar da representação subsequente (durante as Guerras Sino-Japonesa e Russo-Japonesa) de caráter nacional como masculino, marcado pelo “espírito militar” (shôbu ninkyô) e “lealdade e coragem” (chûko giyû), essa caracterização feminina da Literatura Japonesa continuaria no pós-guerra, principalmente por uma necessidade de identificação a singularidade e continuidade da língua nacional e como resultado da mudança na noção de bungaku do sentido mais amplo das humanidades para o sentido mais restrito da literatura imaginativa que enfatizou as emoções humanas. (SUZUKI, 2000, p. 79).

 

Seguindo esse pressuposto a imagem do indivíduo nipônico socialmente ligado as suas raízes heroicas e nacionais, porém sensível e voltado para o autoconhecimento, como um guerreiro samurai, passa a ser difundida e reiterada no ocidente.

O gênero “Romance do Eu” (Shi Shôsetsu) que se desenvolveu a partir do período moderno inicialmente referia-se “a certos esboços autobiográficos contemporâneos cujos autores pareciam escrever diretamente sobre suas vidas pessoais” (SUZUKI, 2000, p.89). Mas esse conceito passou a se tornar nebuloso na medida em que os estudiosos buscavam referenciar essas obras tendo como base a literatura clássica japonesa, em específico os diários femininos, que tinham como objetivos diferentes e expressavam sentimentos diversos daqueles da sociedade moderna japonesa. Por causa desta associação do “Romance do eu” com a literatura de autoria feminina clássica (joryû nikki bungaku), particularmente após a segunda guerra mundial, a literatura de autoria feminina passou a ser vista como bastião do estilo clássico, sendo assim para que a obra fosse considerada erudita precisaria manter a mesma estrutura linguística tal qual as damas da corte do período Heian.

 

Sei Shonagon e suas assistentes, 1683.
Ukiyo-e de Hishikawa Moronobu (1618-1694).
Fonte: Wikimedia Commons

 

É importante ressaltar, segundo afirma Tamura (2016), que embora tenham usado os modelos clássicos como embasamento para o “Romance do Eu”, as damas da corte de Heian já produziam obras ficcionais baseadas em experiências pessoais, em que se sobrepunham em camadas suas biografias de maneira ficcionalizada. Dessa forma o público leitor, reconhecendo a narrativa real da autora, tinha interesse na forma pela qual a narrativa seria construída, o que ressaltaria a estilística e técnica do autor. No período moderno, apesar de muitas mulheres utilizarem-se desse modelo narrativo e linguístico na construção de seus romances, apenas nomes masculinos foram associados ao “Romance do Eu”.

Para embasar essa afirmação de que a essência do “Romance do Eu”, estaria apenas na literatura clássica de Heian, muitos críticos literários debruçaram-se sobre a produção feminina, enfatizando o nacionalismo na escrita e estilo das damas, que na realidade representariam não a nobreza, mas sim uma camada marginalizada da corte, que o estudioso Saigô Nobutsuna (1916), influenciado pela crítica marxista as chamaria de filhas dos zuryô (governadores de províncias), o que revelaria a resistência dessas mulheres por meio da escrita. Para Saigô (1916) embora a essência do gênero Romance do Eu contenha nos diários femininos, como no Diário da Efemeridade, escrito pela Mãe de Michitsuna, por ser uma obra auto centrada na biografia da narradora, a escrita feminina na modernidade se basearia não no modelo clássico de escrita, mas na forma de resistir e criticar a sociedade japonesa em meio a uma sociedade literária que não as via como iguais. Outra questão levantada pelo estudioso é que embora esses diários tivessem sido escritos em kana, criados pelas damas da Corte de Heian, o conteúdo dessas obras havia sofrido clara influência da poesia lírica chinesa, visto que todos os poetas do século X e XII precisavam ser versados na escrita e poesia advinda da China. Ademais,

 

As escritoras de Heian tornaram-se as figuras supremas da resistência, bem como uma tradição popular nacional; Elas passaram a simbolizar a intelectualidade japonesa (masculina) do pós-guerra politicamente e socialmente marginalizada, que aspirava a ressuscitar por meio de seus laços com a tradição popular nacional; (SAIGÔ apud SUZUKI, 2000, p. 91)

 

De acordo com essa perspectiva durante a transição do período militar para o período moderno, a fim de se auto afirmarem como profissionais em sua área muitas escritoras seguiram um modelo pré-estabelecido de escrita para que sua produção fosse lida, além do público leitor feminino. Muitas contavam com o apoio de escritores tutores, como aconteceu com Higuchi Ichiyô (1872-1896), que embora tenha começado a seguir esse modelo, ao buscar produzir algo que fosse aceito pelo grande público das revistas literárias precisou mudar seu estilo de escrita. Sobre o caso específico da autora nos debruçaremos a seguir.

Por outro lado tornou-se difícil para estudiosos homens dissociarem a produção literária moderna da essência de exploração do eu dos diários clássicos, o que gerava um paradoxo entre a formação de um sistema literário autóctone baseado em influências clássicas (que por sua vez tinham sua base na poesia e escritos chineses) graciosa e ligada ao desapego de bens materiais, versus uma produção que representasse a modernidade e o avanço industrial do Japão moderno, que buscava esconder um passado luxuoso voltado apenas para as famílias nobres.

 

(…) eles reconfiguraram e racionalizaram as associações femininas da literatura nacional japonesa, enfatizando a importância da tradição lírica e auto-exploratória como a quintessência da literatura e alegando que essa tradição era crítica para o desenvolvimento do eu moderno em termos tanto do indivíduo quanto da nação em face de uma sociedade de massa industrial em rápida expansão (SUZUKI, 2000, p. 95).

 

Neste caso enquanto os estudiosos homens buscavam reafirmar uma literatura com identidade nacional, excluindo produções clássicas da construção desse sistema literário e suas influências chinesas, as discussões sobre política e racionalidade advindas do exterior, embora fossem aplicadas na produção literária eram deixadas em segundo plano, visto que a busca maior era implantação de um ideal nacional puro. O que significaria dizer que não havia influências tanto chinesas quanto europeias.

 


 

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