3. Particularidades dos mukashi banashi japoneses

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A despeito de minha ascendência japonesa, desde cedo as diferenças entre os enredos dos mukashi banashi japoneses e dos contos maravilhosos ocidentais chamaram-me a atenção. O que, primeiramente, saltava-me aos olhos, era a extensão da história: eu gostava muito daquelas que apresentavam uma narrativa longa e descrições detalhadas, e os contos japoneses, em sua maioria, são bastante concisos e faltam detalhes acerca dos cenários e das personagens.

Outra questão diz respeito ao desfecho da história, quase sempre feliz no caso dos contos do Ocidente, ao contrário dos japoneses. Além disso, percebemos nestes traços de violência – por exemplo, os maus-tratos aplicados a um animal que, para uma criança, normalmente consiste em algo inaceitável; temos, também, contos onde uma personagem inocente morre no meio da história. No caso dos contos ocidentais, a morte é algo que ocorre normalmente ao antagonista (vilão). É interessante notar que, nos mukashi banashi e nas histórias japonesas de modo geral, dificilmente o vilão é morto no desfecho da narrativa; o mais comum é que seja afugentado. Podemos a isso relacionar o pensamento japonês de que a preferência por afugentar, ao invés de matar, baseia-se na ideia de que é melhor podermos escapar ao mal, uma vez que não podemos erradicá-lo. Isso porque o Mal, enquanto entidade, nunca será abolido. Mesmo porque, sem a existência do Mal, o Bem não teria sua razão de ser. Na realidade, este não é um pensamento característico apenas dos japoneses, mas do povo oriental como um todo, conforme veremos mais à frente.

Há ainda o maniqueísmo das personagens. Nos contos de fadas ocidentais, normalmente elas aparecem divididas entre “heróis” e “vilões”; nos mukashi banashi japoneses, em especial aqueles mais antigos, os limites entre “Bem” e “Mal” não ficam claramente delineados.

 

Urashima Taro Ilustração do manuscrito Urashima Taro Kanbun (1661-1673) Fonte: Gallica Bibliothèque Nationale de France

 

Relaciono aqui um exemplo conhecido entre os descendentes de japoneses: a versão infantil do mukashi banashi Urashima Tarô (“Urashima Tarô”), cujo protagonista, um pescador, salva uma tartaruga que estava sendo maltratada por um grupo de crianças. Dias depois, enquanto pescava, Tarô escuta uma voz lhe chamando: era a mesma tartaruga, que o convidava para um passeio ao reino do fundo do mar, como recompensa pela sua boa ação. Chegando ao local, Tarô é recebido pela princesa do Palácio do Dragão, e lá permanece por vários dias, sendo tratado com todas as honrarias. No entanto, certo dia Tarô diz à princesa que desejava voltar à sua terra, pois estava preocupado com seus pais. Ela lamenta, mas concorda com o visitante, oferecendo-lhe como presente uma caixa que, no entanto, não poderia ser aberta. Tarô retorna à sua aldeia, mas nota que tudo está diferente, desde as casas até as pessoas e suas vestimentas. Decide então perguntar por sua família, e um ancião lhe diz que seu avô lhe contara a história de um pescador de nome Urashima Tarô, que havia saído para pescar e nunca mais voltara, e que o fato acontecera trezentos anos antes. Conscientizando-se da diferença de dimensão temporal entre o reino do fundo do mar e sua realidade, ele toma conhecimento da morte de seus pais e, desolado, esquece-se da recomendação da princesa do Palácio do Dragão e abre a caixa: no mesmo instante, de dentro dela, uma fumaça branca se levanta e Tarô transforma-se em um velho.

De modo geral, em todas as lembranças de descendentes de japoneses que conhecem a história, ela suscita certa indignação: por que um homem de “sentimentos nobres” como Tarô, que salva um animal – sendo por isso recompensado – é, ao final, “castigado” dessa forma? A princesa acaba, para muitos, assumindo o papel de “vilã”, na medida em que oferece um presente que não poderia ser aberto; há quem diga que ela, revoltada com o desejo de Tarô de retornar à sua terra, manipula sua curiosidade (proibição de abrir a caixa) através do presente que lhe oferece.

Na classificação de Yanagita Kunio, Urashima Tarô aparece como um densetsu (lenda). No entanto, considerando-se suas versões mais antigas, há um detalhe significativo que foi alterado no decorrer do tempo: nas versões do conto que surgem até o século XV, a princesa do Palácio do Dragão e a tartaruga que Urashima salvara eram o mesmo ser, e o pescador se casa com ela. Dessa forma, é passível de ser classificado também segundo a subcategoria 2.2. (narrativas sobre casamentos) – com o acréscimo de ser uma narrativa sobre casamentos entre seres diferentes (irui kon’in no mukashi banashi).

 


 

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