Experiências


Joy Nascimento Afonso

Publicado por mimi em

1 Comentário

Literatura Japonesa, “pra quê?”

Joy Nascimento Afonso [1]

Esta foi a pergunta que ouvi de uma colega da graduação quando disse a ela que meu sonho era pesquisar e dar aulas na área de literatura japonesa. Na época, normalmente quem ingressava nessa área de pesquisa eram majoritariamente os estudantes nikkeis e eu não tendo ascendência japonesa, e tendo aprendido a língua japonesa na graduação no interior de São Paulo, longe de um grande centro, parecia à minha amiga uma sonhadora do impossível.  Na época eu acabara de ler Jun’ichiro Tanizaki, primeiro autor japonês que li, e embora fosse leitora assídua da literatura universal, nunca havia sido tão tocada por um estilo tão impactante como o do autor nipônico. Nada que eu havia lido me parecia tão inquietante, a ponto de ter lido o romance “A Chave (Companhia das Letras, 2000) em apenas uma semana. A decisão de pesquisar literatura japonesa veio após essa semana. Realmente não foi um caminho de pesquisa fácil, mas hoje, vejo com orgulho meus alunos (nikkeis e não-nikkeis) seguindo muitas áreas de pesquisa, me pergunto qual área seria fácil, no momento atual que temos vivido na Universidade?

Hoje, com a carreira de professora universitária consolidada e no meio de um doutorado pelo Programa de Pós-Graduação da Unesp – Assis, sob orientação da Profa. Dra. Gabriela Betella, optamos pelo estudo da produção literária de autoria feminina japonesa, analisando a coletânea de contos “América Latina: Traição e Outras Viagens”[2] (2000) da escritora Banana Yoshimoto, fazendo o percurso de formação da escrita feminina no contexto nipônico, partindo da produção de diários das damas da Corte de Heian (794 – 1192) e descrevendo as características ou influências da produção clássica na obra de Banana. Trata-se de um trabalho de olhar para o passado com os pés no presente, trazendo as vozes dessas mulheres que ainda hoje ressoam de muitas formas e a partir de motivações diversas.

 

No santuário – museu “Sanjusangendô” em Kyoto, março de 2020. (Fui apresentar o templo para dois alunos, lá estão muitos tesouros nacionais do Japão).

 

Buscando ter acesso a referências bibliográficas para a tese, em que pesquisadores japoneses tratassem sobre o tema e não apenas um olhar ocidental sobre o assunto, me candidatei à bolsa de estudos para doutorandos “Japan Foundation Studies Fellowship Program (Japanese Studies Overseas and Intellectual Exchange)” em novembro de 2018. Para seguir o cronograma da minha pesquisa, juntamente com minha orientadora, já havíamos proposto um período de pesquisa no Japão, a fim de poder pesquisar fontes bibliográficas. Assim, nos programamos, cumprindo primeiramente os créditos do doutorado e, em seguida, procuramos um possível orientador para a minha pesquisa, pois, para a seleção da bolsa, a carta de recomendação de um professor no Japão, de nossa área de pesquisa, é item essencial para a eleição dos bolsistas. Após o preenchimento de muitos formulários, comprovando a seriedade e objetivo da pesquisa, a definição do orientador foi a questão mais difícil, a meu ver. Recebi o aceite das três professoras com quem entrei em contato, mas, como não as conhecia pessoalmente, precisei confiar da mesma forma que na graduação, quando decidi que iria pesquisar literatura, apenas na minha intuição e gosto por desafios.

A professora Dra. Chisa Amano, professora de estudos literários clássicos da Kyoto University of Education (Kyoto Kyoiku Daigaku), havia sido a orientadora de uma ex-aluna e orientanda minha durante o período que ela esteve naquela universidade como bolsista MEXT no ano de 2017, o que possibilitou que nosso vínculo fosse possível. Nossa ex-aluna, hoje professora de língua japonesa e literatura brasileira, havia desenvolvido uma pesquisa para monografia final sobre literatura de autoria feminina, algo que já havíamos começado na Unesp – Assis. Sendo assim, a literatura de autoria feminina tornou-se o nosso vínculo maior entre o Brasil e o Japão. Foi dessa forma que, após longo tempo lecionando e mantendo a pesquisa de doutorado quase em segundo plano devido às atividades da Universidade, passei a ser aluna novamente quando recebi a resposta afirmativa da bolsa de estudos.

 

No “Fushimi inaritaisha” em Kyoto, bairro de Fushimi, perto da Kyoto Kyoiku Daigaku, onde desenvolvi minha pesquisa, em janeiro de 2020. Não é a parte mais famosa do templo, mas sim o outro lado da montanha Inari.

 

Devido às minhas atividades na Unesp-Assis, embora o programa ofereça de 5 meses a 1 ano de bolsa, optei apenas pelo período mínimo, e para isso me programei com antecedência a fim de poder aproveitar ao máximo. A Fundação Japão – Kyoto foi minha base durante a estadia na cidade, oferecendo muitas oportunidades culturais – peças de teatro Kyôgen, filmes, entre outros, semanal e gratuitamente, em que pude usufruir de tudo organizando minha pesquisa durante a semana. Tudo parecia simples antes de embarcar – mas ao chegar a Kyoto, uma cidade que oferecia muitas oportunidades culturais e lugares históricos próximos à minha residência – tornou-se um desafio não visitar templos e palácios, e permanecer lendo na biblioteca da universidade. Um grande apoio durante meu processo de adaptação foram os staffs da Fundação Japão – Tóquio, que cuidavam de toda parte organizacional e institucional para que eu fosse bem assessorada e não precisasse me preocupar com questões financeiras e burocráticas. A biblioteca da Fundação Japão em Tóquio, já havia separado várias obras de referência que aqui no Brasil eu não teria acesso, e pude pegar emprestar por um longo tempo. Infelizmente, logo após a minha chegada, a biblioteca entrou em reforma e não pude mais emprestar outros materiais.

Além do apoio institucional, como bolsista da Fundação, tive a oportunidade de apresentar a pesquisa e discutir com outros pesquisadores em dois momentos. Primeiro na reunião nacional dos pesquisadores em janeiro de 2020, onde pude compartilhar com outros pesquisadores e funcionários da Fundação Japão sobre a minha pesquisa e ouvir comentários sobre o tema, e em seguida na Fundação Japão – Kyoto. A convite do Sr. Satoshi Hasegawa, chefe do Oficce de Kyoto, e falei para os cidadãos da cidade sobre a literatura japonesa no Brasil, sobre minha experiência com a literatura japonesa e minha vivência no Japão, que embora naquele momento fosse a terceira estadia da minha vida, estava sendo uma experiência completamente diferente.

 

Palestra, organizada pela Japan Foundation – Kyoto, em Janeiro de 2020, na Kyoto International Community House.

 

Nessa segunda palestra fui tocada profundamente, tendo em vista que, ao falar sobre literatura para pessoas que não fazem parte da vida acadêmica, os comentários e perguntas me fizeram refletir ainda mais sobre o sentido da minha pesquisa. Naquele momento me dei conta de que ler e pesquisar sobre mulheres que escrevem ia além das leituras de livros e artigos: tornou-se um espaço de reflexão sobre o papel da mulher japonesa na sociedade contemporânea. Para mim sempre foi uma grande responsabilidade poder falar sobre a vivência feminina, porém meu foco maior não é que eu fale por elas, mas sim que sua escrita fale por elas mesmas.

Diferentemente das duas últimas experiências que tive ao estudar no Japão, primeiro como intercambista na Universidade de Tenri – Nara por um ano, e depois como professora em treinamento também pela Fundação Japão em um curso de verão no Japan Foundation Japanese-Language Institute, em Urawa por dois meses e meio, sempre houve uma programação das minhas atividades diárias, quando dessa vez, tive que reaprender a criar o meu cotidiano não apenas como uma aluna, mas também como uma moradora da cidade. E acredito que esse foi meu maior desafio e aprendizagem enquanto pesquisadora que não apenas vivenciava o Japão pelos livros, mas que, agora, via e sentia o cotidiano como uma moradora do pequeno bairro de Fushimi.

 

Saboreando um prato tradicional da culinária de Nara, próximo ao “Kasugataisha”

 

Como pesquisadora, eu frequentava a biblioteca da universidade diariamente, então precisava reservar sala de pesquisa todos os dias, não havendo nenhum privilégio por ser uma doutoranda. Ao mesmo tempo, eu me tornara uma aluna que também assistia a aulas (por minha opção pessoal, a fim de observar a metodologia do ensino de literatura), e tinha reuniões semanais com a minha orientadora, além das obrigações como residente da moradia estudantil disponibilizada pela universidade para mim, assim como qualquer outro aluno.

Tive que aprender a entender a cidade, seus cheiros, sua rotina, o contato com as senhorinhas no supermercado no fim do dia e com as pessoas que voltavam do trabalho. Olhar para aquele cotidiano em que as mulheres carregavam seus bebês, sacolas, livros e computadores em suas bicicletas, e ver que a minha pesquisa saía dos livros e estava diante dos meus olhos constituiu um aprendizado profundo, às vezes difícil de mensurar em palavras. Sem dúvida, em um primeiro momento a solidão foi uma companheira difícil de enfrentar, mas hoje, ao retornar e vivendo em isolamento, tendo de estar longe dos meus familiares e alunos, sinto que aquele período inicial de adaptação de idas e vindas, apenas do quarto para a biblioteca, acabou me preparando para o momento que temos de vivenciar agora. A literatura foi a minha companheira e me ajudou, assim como agora, a lidar com a humanidade que temos em nós e no Outro.

 

Retornando ao primeiro templo que visitei no Japão, “Tôdaiji Nigetsudô”, em Nara, março de 2020.

 

A pesquisa em literatura japonesa, para aqueles que têm interesse, sem dúvida exige um esforço em relação ao aprendizado da língua japonesa, a fim de se poder ler as obras em sua língua original, mas qual pesquisa não exigiria o mesmo esforço? Mesmo em língua portuguesa, meus colegas de doutorado precisam ler tanto ou mais do que eu. Além disso, a língua expressa uma profunda relação com a cultura. Algo indissociável! Quando a fluência na língua possibilita a comunicação, surge a oportunidade de os japoneses buscarem saber o que você pesquisa e falarem de suas experiências, algo fascinante, pois novamente eu não deixava de ser a estrangeira, mas me tornava alguém aberta a ouvir deles e sobre eles.  Experiência melhor não há! Outro fator de desafio, que venho percebido entre meus colegas acadêmicos, parte de uma autocrítica que tem a ver com o universo de leitura que temos. Se você tem interesse em pesquisar literatura, comece lendo a nossa literatura brasileira. Incomoda-me muito termos autoras tão fantásticas em nosso país, mas tão pouco conhecidas. A meu ver, estar aberto a conhecer a cultura e literatura do outro, passa por conhecer a minha primeiro. De qualquer forma, aos interessados por onde começar nas letras nipônicas, deixo a seguir algumas indicações de meus gostos pessoais.

Para iniciar a leitura de obras e autores japoneses, deixarei algumas indicações baseadas na minha experiência de leitora, que me tornaram pesquisadora. De início, eu começaria pela leitura da obra ensaística “O Livro do Travesseiro” (Editora 34, 2013) da espirituosa e perspicaz Sei Shônagon, uma dama da Corte de Heian (794 – 1192), que viveu na antiga Kyoto e conta os bastidores dos cerimoniais e de sua vivência como uma nobre. A vida dessas damas não era tão fácil como parecia, e saber como elas viviam nos possibilita conhecer muito do mundo político e social daquela época. Suas listas, em que descreve os melhores momentos do dia, como os amantes devem se portar e o que se deve usar em encontros com os amantes são meus ensaios prediletos!!

Com uma escrita sinestésica e surrealista de um Japão que embora vivesse grandes mudanças políticas e sociais, ainda mantinham as tradições culturais, indico a leitura das obras de Yasunari Kawabata, primeiro autor japonês a receber um prêmio Nobel, que tem muitos de seus romances traduzidos para a língua portuguesa, possibilitando-nos a leitura de quase toda a sua produção. Dele indico “A Casa das Belas Adormecidas” (Estação Liberdade, 2004), em que traz uma narrativa peculiar sobre o corpo feminino, fetiches e senilidade. A obra influenciou diretamente a produção do romance de Gabriel García Marquez, “Memória de Minhas Putas Tristes” (Record, 2005), segundo relato do próprio autor colombiano.

Primeiro autor lido por mim ainda na graduação, Jun’ichiro Tanizaki é um daqueles romancistas que incomoda com as suas temáticas polêmicas, nos faz olhar para uma sociedade em plena transformação social e para os problemas que, antes encobertos pela tradição, são desvelados diante de nós. Há uma forte crítica ao capitalismo, à hipocrisia social e à maneira como os japoneses lidam com essas questões. Embora uma das obras mais famosas do autor seja o romance “As Irmãs Makioka” (Estação Liberdade, 2007), indico a sua última obra: “Diário de um Velho Louco” (Estação Liberdade, 2002). Conforme diz o título, a obra gira em torno da vida de um senhor na terceira idade que resolve viver seus últimos dias seguindo seus desejos mais íntimos, e talvez pouco corretos aos olhos da sociedade moderna japonesa. Temas polêmicos!!

Sabe aqueles textos que depois que você lê fica zonzo e, às vezes, até fica sem sono? Então, existe um escritor japonês que faz exatamente isso comigo, sempre! Kenzaburo Ôe é o nome dele. Segundo autor japonês a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, sua escrita mescla uma crítica ferrenha à sociedade atual, numa mescla de surrealismo, erotismo e mitologia japonesa. Do autor, indico “Os 14 Contos de Kenzaburo Ôe” (Companhia da Letras, 2011), uma coletânea com seus contos mais famosos e perturbadores. Gosto muito do conto “O nascimento da nova Izumi Shikibu”, que traz recordações da infância do autor, reminiscências da literatura clássica feminina e uma visão mítica do interior do Japão. Ôe é normalmente a figura que eu tenho de Deus, pois é militante da causa ambiental, visão lúcida sobre a sociedade japonesa e, ao mesmo tempo, tão delicada para tratar de temas difíceis e caros ao ser humano. Enfim, impossível não se tornar fã, né?

Falando dos autores contemporâneos, na atualidade temos uma gama enormeeee de escolhas. Então vou indicar apenas mulheres (não posso deixar de falar delas, não é?). Da Banana Yoshimoto, escritora com que trabalho em minha tese, indico “Tsugumi” (Estação Liberdade, 2015), para começar a ler a produção da autora. É um romance leve, delicado e descreve aquela mudança difícil da adolescência para a vida adulta, apenas pela perspectiva feminina. É um romance que eu indicaria para quem quer começar a ler as autoras japonesas.

Para quem gosta de romances mais dinâmicos, com mais ação, as obras da Yoko Ôgawa são uma ótima pedida. Da autora, embora o mais famoso, por ter sido adaptado para o cinema, seja “A Fórmula Preferida do Professor” (Estação Liberdade, 2017), eu gosto muito do “Museu do Silêncio” (Estação Liberdade, 2016), em que a memória de objetos em um lugar misterioso nos chama a atenção.  Para quem gosta de mistérios é uma ótima!

Dois anos atrás conheci a autora Sayaka Murata e, sinceramente, minha vida mudou depois que li o seu “Querida Konbini” (Estação Liberdade, 2018). Com uma narrativa que causa um estranhamento profundo e que nos leva a perguntar “onde estamos?” a cada página, a narradora nos leva a questionar sobre a modernidade, a vida adulta, as regras sociais e principalmente o nosso papel como mulher na sociedade. Gostei muito do romance, que li em apenas três dias. Durante o período no Japão, aproveitei e comprei outros romances da autora. Para quem gosta de narrativas bem incomuns, eu não perderia tempo!

Para quem gosta de leituras excitantes em vários níveis e que despertem aspirações para futuras pesquisas na área, minha maior dica seria “leiam de tudo”, não apenas autores famosos, ou mais vendidos, pois a literatura, seja a japonesa ou brasileira, faz parte de um sistema muito maior e pertence a uma tradição. Aproveitem as traduções feitas, aproveitem também a quarentena e se deliciem nas obras dos autores japoneses. O desejo da pesquisa surgiu em mim porque eu já gostava muito de ler, e percebi o quanto a literatura nos transforma. Pra que serve a literatura então? Muda a nossa vida por meio da experiência narrada. E a pesquisa em Estudos Japoneses? Porque a experiência do outro é aprofundada de forma social, cultural e linguística.  E sempre que me volta a pergunta – comentário da minha colega de graduação – “Literatura Japonesa, pra que?” –, a resposta logo me vem à língua: “para que o nosso mundo se amplie e as nossas experiências pessoais cruzem oceanos e lá do outro lado do mundo, acabemos por nos encontrar também”.

 

Em frente ao “Tôdaiji”, em Nara

 

Fotos: Acervo pessoal

[1] Professora Assistente Mestre, de Língua e Literatura Japonesa, lotada no Departamento de Letras Modernas, na Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquista Filho” (UNESP), campus de Assis, no Curso de Letras – Japonês. Doutoranda pela PPG – UNESP/ Assis, em Estudos Literários. Mestre pela Universidade de São Paulo (USP), pelo PPG – Língua, Literatura e Cultura Japonesa. Bolsista- doutoranda  pelo “Japan Foundation Japanese Studies Fellowship Program (Japanese Studies Overseas and Intellectual Exchange)”, de novembro de 2019 a março de 2020, na Kyoto University of Education.

[2] A tradução do titulo da obra é nossa: Furin to Nanbei: Sekai no Tabi 3



Comentários

  1. Juaquim Naka disse:

    Otimo trabalho! Gostaria muito em participar