3. O caso de Higuchi Ichiyô

Dossiê Literário > Dossiê Literatura de autoria feminina no Japão moderno> 3. O caso de Higuchi Ichiyô

Uma das maiores autoras do inicio do século XX, conhecida por seu estilo único em que conseguiu mesclar a lírica da poesia clássica a temas modernos, como a condição da mulher na sociedade, frente à pobreza e a prostituição, Higuchi Ichiyô (1872- 1896) foi “a voz do período Meiji”, segundo escreveu Mori Ôgai (1862- 1922), após o falecimento da escritora, por tuberculose com apenas 24 anos.

 

Higuchi Ichiyô (1895)
Fonte: Wikimedia Commons

 

Ichiyô, que teve acesso apenas à educação básica na Haginoya, uma pequena escola de formação de moças, onde ela aprendeu os fundamentos da poesia clássica e leu os clássicos da literatura de Heian, se tornaria a representação, tanto em suas obras e quanto em sua biografia do paradoxo cobrado das escritoras de sua época, que tinham de se preocupar com o estilo de suas obras refletindo e analisando a realidade das mulheres na sociedade, enquanto precisavam se manter castas e exemplares diante dessa mesma sociedade. Enfim precisavam ser um modelo a ser seguido, de independência financeira e intelectual, sem perder a dependência dos modelos do período Edo (1603 – 1868). Enfim um ideal impossível de ser alcançado.

A autora que passou a escrever literatura profissionalmente ainda com 14 anos, a fim de sustentar sua mãe e irmã mais nova, após a morte do pai, assumindo as dívidas do irmão mais velho e encarregando-se da chefia da casa, passou a ser vista anos após a sua morte como exemplo de mulher, devido os sofrimentos vividos para se manter “pura” diante da sociedade de Meiji. Para que essa imagem de mártir fosse difundida, apenas suas obras, que descreviam a mulher sempre a margem da sociedade, foram comparadas à sua vida, mas seu diário – “O Diário de Higuchi Ichiyo” (Higuchi Ichiyo Nikki, 1887 -1896) obra ainda pouco estudada, e por vezes vendida separadamente de sua antologia completa, revela claramente a luta da escritora em se manter atuante junto aos círculos literários que se formavam, ao mesmo tempo, que buscava preservar sua imagem de moça casta.

Higuchi Ichiyô teve como tutor, que lhe fez sugestões sobre como deveria escrever para o público moderno, o também escritor Tôsui Nakarai (1861 – 1926). Segundo relatos biográficos da autora, contidos em seu diário, ela precisou de afastar de Tôsui devido a boatos de que os dois teriam um relacionamento mais íntimo, e embora ele fosse viúvo e a escritora solteira, esse relação não seria vista com bons olhos pela sociedade da época, visto que ele assumiria as dívidas da família da moça. Segundo Keene (1995), que analisa o diário da autora;

 

Olhando objetivamente, tudo o que aconteceu foi que ela rejeitou a ajuda de Tôsui depois que ela percebeu que era inútil depender dele, vender suas histórias e fornecer a renda necessária para as despesas de vida. Ela decidiu confiar em Tanabe Kaho. Foi algo simples assim. E assim, aconteceu que Ichiyō utilizou o escândalo de suas supostas relações com Tosui para estabelecer laços com Miyako no Hana. Se Tôsui tivesse tido influência suficiente para ajudá-la a fazer sua estreia com sucesso, ou se Ichiyō pudesse ter contado que ele providenciasse um subsídio fixo para as despesas de moradia, ela certamente não teria rompido com ele formalmente, não importando o quanto na Haginoya (escola) fosse relevante. Tosui poderia argumentar que foi um escritor sorte abaixo, que foi traído por Ichiyō. (p.286).

 

Isso comprova que mais do que uma moça casta e “sofredora” Higuchi Ichiyô assim como muitas mulheres de seu tempo buscava ser reconhecida por sua produção literária e não por seu gênero. Embora Keene (1995) pareça certamente machista em seu comentário sobre a rejeição de Tôsui, nos parece que havia maior preocupação sobre o caso de amor entre o casal, do que se ela tinha ou não condições de se manter por meio de sua escrita.

 

Capa do livro Ichiyôshû (“Coletânea Ichiyô”). Hakubunkan, 1911.
Fonte: Coleção Digital National Diet Library

 

Os diários de Higuchi Ichiyô, com mais de 30 volumes, seguem o modelo clássico de estrutura cíclica das damas de Heian, onde as entradas da obra são marcadas com termos sazonais. Mesclando a descrição do dia a dia de uma mulher, que buscava a independência financeira por meio da força de seu trabalho, à liricidade refletida nas evocações sobre o passado, sobre a arte e a efemeridade da vida.

 

Seu diário pertence a mais antiga tradição do gênero no Japão, uma volta ao Diário da Efemeridade, cuja autora se perguntou, mesmo quando ela insistia que ela escrevia apenas a verdade, se algumas falsidades não haviam se infiltrado em sua narrativa dos fatos.
Ichiyō começou a manter um diário em 1887, quando ela tinha quinze anos de idade. Não está claro o que a levou a fazê-lo. Naturalmente, não é de modo algum incomum para uma menina de quinze anos desejar confiar suas emoções a um diário, mas o de Ichiyō se distinguia da maioria dos outros, mantidos por escritores da era Meiji, por sua dicção arcaica, um estilo pseudo-Heian que ela mantéu durante todo o diário, independentemente do assunto discutido (KEENE, 1995, p.287).

 

O estilo da autora, para o qual Keene chama a atenção no excerto supracitado, ainda hoje é motivo de muitas discussões sobre a originalidade da produção de Higuchi. Isso porque, enquanto que para os críticos da década de 60 provaria a influência direta das obras clássicas japonesas, reforçando a imagem da mulher modelo, conhecida como “a última mulher do Japão antigo”; estudiosos da obra da autora, da década de 80, veem a modernidade inerente na mesma produção, ao discutir temas voltados a luta feminina e feminista no Japão. Nas palavras de Van Compernolle (2006),

 

Esta imagem da “última mulher do Japão antigo” foi fortalecida (talvez involuntariamente) pela primeira geração de críticos de Ichiyô, do pós-guerra. Reconhecidamente, esses estudiosos concentraram-se menos na interpretação da produção de Ichiyô, do que na reconstrução de sua vida, e mesmo quando eles faziam análises de seus textos a exegese ocasionalmente tomava a forma de uma redução autobiográfica, na qual ambos, a concepção para os temas na obra, foram procurados apenas em eventos da própria vida de Ichiyô (uma prática, aliás, de modo algum estranho a tendências mais amplas na critica literária japonesa daquela época). Esse grupo de estudiosos concluíram uma necessária e significativa tarefa de comentários das obras de Ichiyô, que naquela época se tornara bem difícil para ler, aumentando a sensação de distância dela da modernidade. Todas as obras da autora foram integralmente comentadas – e as mais aclamadas obras receberam essa atenção várias vezes – dado assim a coleção de obras de Ichiyô aparenta e nos dá a sensação de ser uma moderna edição dos clássicos literários japoneses. Isto é onde os críticos pós-guerra contribuíram inevitavelmente para a imagem de Ichiyô como um adiar dos tempos pré-modernos. (…). Contudo, os críticos pós-guerra não se perguntaram sobre o propósito ou função dessas alusões aos textos antigos. A suposição tácita deles parecia ser a de que aquela alusão serviria para a intenção artística de Ichiyô e refletiria sua paixão pela literatura do passado. (p.03 e 04)

 

Segundo Van Compernolle (2006) tanto o grupo que buscava provar as influências clássicas, baseados na biografia da autora, quanto àqueles que procuravam a modernidade não se atentando ao estilo de escrita de Higuchi, acabaram reduzindo a obra da escritora a dois patamares estilísticos. Nas palavras de Compernolle (2006) o “discurso crítico, então, parece incapaz de pensar simultaneamente sobre Ichiyô como uma autora com raízes na literatura tradicional japonesa e como uma escritora engajada com problemas na sociedade moderna” (p.05). Para ele embora a autora mantenha vocábulos e um estilo do século anterior, determinado por sua formação, que se comparada aos outros escritores fora escassa, ela consegue descrever com mais realismo a vivência daqueles que ficaram à margem da modernidade adquirida (leia-se aqui comprada) pelo Japão.

Enquanto muitos autores se preocupavam com a decadência da elite japonesa e o crescimento da burguesia, cada vez mais seguindo moldes europeus, Higuchi Ichiyô trouxe em suas obras como “Takekurabe” (Jogos de Criança, 1895 -1896), “Nigorie” (Aguas Turvas, 1986), “Jûsanya” (13 Noites de Sonho, 1986) e “Wakaremichi” (Caminhos Opostos, 1986) a perspectiva das mulheres, que não apenas naquele momento, mas muito antes não tiveram oportunidades de ascensão social, não por falta de esforço, mas sim devido as próprias construções sociais pré-concebidas no período dos samurais. Assim por mais que elas tentassem, não haveria destino diferente. Para Malagón (2014), sobre as personagens femininas de Higuchi Ichiyô,

As mulheres desta história são representantes não apenas do abuso e da opressão feminina na época, mas também da vulnerabilidade de sua situação. Aquelas mulheres suficiente afortunadas em casar-se, deviam observar, impotentes e em silêncio, o descontrole de seus maridos e infidelidades, vendo-se arrastadas a pobreza e a humilhação pública sem nenhuma contestação (p. 199)

De acordo com o excerto supracitado, as personagens de Higuchi, assim como muitas mulheres da época ressaltavam em seus destinos, que embora a sociedade modernizava-se economicamente, socialmente continuava presa a padrões e tradições obsoletos, que sempre violentariam as mulheres.

Essa perspectiva moderna sobre questões sociais seriam a forma original criado pela autora para descrever a sociedade de Meiji. Nas palavras de Van Compernolle (2006),

 

A distância de Ichiyô de uma ideologia emergente da quebra entre o pré-moderno e o moderno faz dela ser única (naquele momento), por sua forte educação nos clássicos japoneses e sua falta quase completa de ambos: instituições com sistema educacional moderno e literatura ocidental. Portanto, tem muito pouco a ver com algum tipo de nostalgia do passado diante de ideias e práticas estrangeiras. Sua paixão pela literatura antiga foi presente desde os tempos quando ela era uma menina, quando leu algumas coisas de escritores do Período Edo como Takizawa Bakin (1767 – 1848). (p.16)

 

Sendo assim podemos afirmar, assim como fez Mori Ôgai, que a autora foi a maior representante de sua época, e que abriria caminho para outras escritoras, apontando por meio de suas obras, que a “nova mulher” japonesa poderia transitar entre espaços e estilos, sem ter de seguir um modelo europeu, pois que possuindo uma herança clássica ficcional, daria continuidade a esta.

 


 

<< 2. Revistas Literárias e Publicações // 4. Conclusão >>