Dirce Miyamura – Traduções e Fruições

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Prólogo: princesas e robôs

A minha infância foi muito simples, mas tive a sorte de ter um pai que nos proporcionou muita leitura, especialmente de livros e revistas do Japão. As revistas vinham de navio, o que demorava de três a quatro meses para chegar até aqui. Uma edição de janeiro, por exemplo, líamos em abril. Mesmo assim, o gostinho da novidade prevalecia sobre qualquer defasagem temporal e esperávamos, ávidas, pelo dia em que nosso pai trazia aquele pacote embrulhado com o papel da Livraria Sol. Era uma revista para senhoras, para a nossa mãe, uma revista para meninos, para o nosso irmão, uma revista para meninas que compartilhava com a minha irmã, e uma revista sisuda e séria para o nosso pai. Era o melhor dia do mês. Era o dia em que ficávamos misteriosamente em silêncio, cada um em seu canto, folheando cada página dessas revistas que nos traziam tantas novidades e emoções do outro lado do planeta.

O interessante era que, através dessas revistas, entendíamos melhor os nossos pais. Seus sentimentos, seus valores, sua maneira de interpretar a vida vinham não de seus ensinamentos diretamente, mas através dessas revistas, que traziam um mundo que era diferente do universo de nosso dia a dia. Essas revistas, percebi muito tempo depois, tinham uma função didática de nos transmitir essa noção do que seria a cultura japonesa, estrategicamente embalados em forma de divertidos mangás. Devia ser cômodo para o meu pai, que muito provavelmente, sabia que por osmose dessas leituras, muito do que seria a função dele estaria sendo repassado para os filhos. Por isso, aqueles pacotes mensais da Livraria Sol eram mágicos. Nosso imaginário ficava animadamente entupido de princesas, generais, ninjas e robôs.

 

Xoguns e Saci-Pererê

Chegou um momento em que meu pai resolveu diversificar nossa leitura para além dos mangás. Ele retirou o desenho, deliberadamente, de nosso universo e substituiu por textos longos. Sim, eram os livros que entraram na nossa dieta de leitura. A essa altura, já devidamente alfabetizada nas duas línguas, japonês e português, era o momento para testar nossa capacidade de interpretação de textos. Os livros japoneses eram sobre história do Japão, biografias de grandes generais e alguns contos. Os livros brasileiros eram de Monteiro Lobato. Nosso imaginário continuava congestionado e cada vez mais confuso com a convivência entre xoguns e saci-pererê. Mas a verdade é que, com a leitura de textos, nosso imaginário é que começou a desenhar as imagens dos personagens históricos e suas ambientações, o que deixava o nosso dia a dia mais instigante.

 

 


 

Foto: Bruna Luise

 

Dirce Miyamura

É tradutora de língua japonesa com atuação em obras literárias, mangá e cinema. Formada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, foi bolsista pela província de Hokkaido, onde realizou estágio técnico em projeto e produção de arquitetura comercial e display para espaços expositivos. Trabalhou na Fundação Japão em São Paulo, com traduções de textos administrativos. Foi professora de japonês no SENAC. Atualmente é também professora de Tai-Chi-Chuan no Centro de Meditação Fo Guang Shan, em São Paulo.

 

 


 

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