Dirce Miyamura – Desenterrando as aulas de piano
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A minha primeira experiência como tradutora profissional se deu com um convite da Editora Melhoramentos para traduzir um livro inusitado. Era um livro sobre as técnicas de piano da consagrada pianista brasileira, Magda Tagliaferro. “A Arte Pianística de Magda Tagliaferro” foi escrita pela sua aluna japonesa, Asako Tamura e publicada somente no Japão, em 1997. Era inacreditável que Magda Tagliaferro, com toda a sua atuação internacional, não tivesse um livro em inglês, francês ou português, destinado a preservar a sua metodologia pianística. O pequeno manual escrito por Tamura acabou se tornando a única fonte para se conhecer os princípios básicos da metodologia pianística de Magda Tagliaferro. A iniciativa da tradução partiu do pianista Fabio Caramuru, o último discípulo de Magda Tagliaferro. As noções de piano que tinha aprendido na infância, apesar de rudimentares, foram preciosos para este trabalho e se tornou uma lição fundamental para as traduções que se seguiriam a partir de então: repertório é fundamental no processo de tradução. E se a informação é nova, é necessária muita pesquisa para se desenvolver uma tradução qualificada.
Também da editora Melhoramentos veio uma outra encomenda, desta vez na área de dicionário. “Michaelis Tour Japonês – Conversação para Viagem”, foi organizado por Antonio Carlos Vilela, e coube a mim fazer a tradução para o japonês das frases mais usuais que um turista brasileiro deveria falar, ou pelo menos arriscar, durante a sua viagem ao Japão. Assino a publicação não só como tradutora, mas como coautora. O dicionário foi lançado em 2001 e durante muitos anos foi um long-seller da editora. Hoje, com as facilidades da internet e até de aparelhos portáteis de tradução creio que este tipo de dicionário de viagem esteja em desuso.
A tradução no cinema
Em 1997, surgiu um novo desafio: legendagem de filmes japoneses para o português. O convite partiu da Fundação Japão, que todos os anos adquiria novos títulos de filmes de longa-metragem para distribuição pelos seus escritórios no exterior. Aqui, o processo de tradução se revelou completamente diferente do que estava familiarizada. Há uma norma de legibilidade a ser cumprida na legendagem: duas linhas de 42 caracteres, incluindo os espaços, no máximo. E quanto menos, melhor. O desafio é conseguir inserir as falas neste padrão, de uma forma sintética, sem perder a essência da fala. Muitas vezes é preciso comprimir as palavras, procurar um sinônimo mais curto. Outro aspecto importante na tradução das legendas é o senso de timing, de quando as palavras devem entrar. Isto para não dar spoiler na frase, ou perturbar a sequência da narrativa.
Também há a questão do estilo de linguagem a ser adotado na legenda. Filmes épicos ou históricos requerem uma linguagem mais formal. Já um filme sobre jovens requer uma linguagem mais despojada e neste caso, recorremos a gírias compatíveis com a narrativa original. Temos que estar sempre atualizados com a dinâmica da língua falada, pois as gírias muitas vezes são datadas.
Nossa predileção pessoal recai sobre os filmes clássicos. Com o ofício da tradução, assistimos uma cena muitas vezes, para entender o contexto da fala, o seu ritmo e sua dinâmica. É comum repetirmos uma passagem 20 a 30 vezes, até acertarmos o comprimento da legenda e o timing. Na definição do tempo de entrada da legenda, trabalhamos com milésimos de segundos. Mesmo assim, depois de todo o trabalho concluído, assistimos novamente o filme por completo, desta vez seguindo unicamente a legenda, que é como a maioria do público brasileiro irá assistir. Assim temos a certeza de como a legenda irá contribuir para a compreensão do filme, sem, contudo, invadir sua narrativa.
Para a Fundação Japão realizamos cerca de 30 legendagens de filmes de longa-metragem. Um dos trabalhos marcantes foi para o Ciclo Kenji Mizoguchi, que o Instituto Moreira Salles nos encomendou, com 18 filmes em película do grande diretor. Foi emocionante rever, agora com os olhos atentos na tradução, clássicos como “A Canção da Terra Natal” e “Oyuki, a Virgem”, que ganharam uma legenda em português pela primeira vez, ou “A Vingança dos 47 Ronins”, “Crisântemos Tardios”, que passaram por uma revisão crítica.
As distribuidoras brasileiras têm optado por fazer as traduções brasileiras de filmes japoneses a partir de um trabalho já feito, em inglês ou francês, talvez por comodidade. Vez por outra, surgem frases ambíguas e sem nexo. Nessas horas, somos chamadas para acertar o sentido da frase, como uma espécie de pronto-socorro de tradução. Adoraríamos atuar com plenitude também para as exibições comerciais, pois a legenda é o único elo do filme com o público que não consegue o idioma que está sendo falado. A compreensão do filme é totalmente dependente da legenda, nesses casos e claro, o sucesso comercial da exibição depende de uma boa tradução.