Monica Setuyo Okamoto – História ou ficção?

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A sociedade japonesa, nas décadas de 1920 e 1930, viveu sob a pressão dos acontecimentos sociais e políticos ocorridos desde a reabertura do Japão ao Ocidente em 1868. O acelerado processo de industrialização e modernização trouxe como consequências o aumento da população urbana e a crise no setor rural. O Japão, mesmo após derrotar dois impérios – a China (1894-1895) e a Rússia (1904-1905) –  continuava a amargar o seu atraso tecnológico e a sua crise econômica. Outros três fatores que contribuíram para piorar esse quadro foram: o terremoto de 1923 que devastou a cidade de Tóquio, o desemprego em massa dos universitários em 1927 e a depressão mundial de 1929. Diante dessa situação de calamidade, o governo japonês tomou medidas severas para reverter a crise. Reforçou a sua política de expansão colonialista, aumentou seu poderio militar, incentivou a emigração e expandiu a xenofobia, especialmente, entre os jovens.

Muitos escritores e intelectuais japoneses chegaram a endossar o ultranacionalismo do governo e a fazer a estetização da política em suas obras. Já o partido comunista tinha pouca influência sobre a massa e as ideias marxistas atraíram somente alguns intelectuais urbanos, os quais se limitaram a estudar somente a sua teoria.

O problema dos trabalhadores rurais japoneses foi pontuado por poucos dentro da literatura. Na verdade, a maior parte dos escritores preferia escrever sobre a individualidade, a tradição cultural do antigo Japão e a vida da classe média urbana. Foi nesse contexto que o romance Sôbô, de Tatsuzô Ishikawa surgiu. O autor derrubou as convenções literárias da época ao tocar profundamente na história oficial dos emigrantes japoneses que viajaram para o Brasil nas primeiras décadas do século XX. As dificuldades, os medos, a miséria e a discriminação desses emigrantes foram escancarados na ficção de Ishikawa.

 

© Ateliê Editorial / Foto: FJSP

 

Acredito que o aspecto básico da obra Sôbô reside nos cruzamentos entre literatura e história que se apresentam intrinsecamente ligados, o que dificulta a definição de seu gênero literário. Partindo desse ponto, pretendo discutir de que maneira o autor levou a problemática histórica da imigração japonesa para dentro da ficção. O grau de lirismo e objetividade, que deveriam configurar o romance, não é suficiente para classificá-lo como ficção. A obra de Tatsuzô é carregada de testemunho da realidade, além de se propor a fazer uma documentação da sociedade da época.

Sôbô narra a saga dos emigrantes japoneses que partem para o Brasil na década de 1930. A história é dividida em três capítulos, nos quais em cada um deles é narrada uma etapa da viagem. No capítulo inicial, o autor descreve a chegada dos emigrantes à hospedaria de Kobe, onde passam alguns dias antes do embarque. Tatsuzô chama a atenção do leitor para a pobreza explícita e cruel, as histórias de vida desses trabalhadores que vinham do interior e, principalmente, o “medo do estrangeiro” que esses viajantes sentiam. Já o segundo capítulo é dedicado totalmente ao cotidiano da viagem dentro do navio, os problemas de comportamento e a discriminação racial e social que os emigrantes japoneses enfrentam pela primeira vez fora de seu país. O autor narra também as péssimas condições de viagem dentro da embarcação, a podridão do sistema mercantil, os negócios escusos, o enriquecimento ilícito das empresas de emigração japonesa. O terceiro e último capítulo conta a chegada dos emigrantes ao porto de Santos, o choque cultural e a busca de um novo destino nas colônias.

 

Cartão Postal Kasato Maru, 1908, Porto de Santos.
Fonte: Wikimedia Commons

 

É importante mencionar que o leitor terá a percepção de estar caminhando da ficção, do imaginário, para a historiografia. Isso ocorre graças à posição plana, sem destaque da personagem central que contrasta com os fatos e acontecimentos narrados pelo autor. A obra, no entanto, está longe de ser uma narrativa de fatos históricos. Além do lirismo de Ishikawa, encontramos muitas marcas de ironia, uma tendência dos romances ocidentais dos anos 1930.

Ishikawa transformou seu relato em ficção, o que lhe permitiu preencher as lacunas existentes em sua memória com o imaginário, sem lhe pesar a responsabilidade de ter que narrar os fatos dentro dos rigores empíricos da história oficial, com fidelidade absoluta. Por outro lado, como narrador ficcional, ele pode descrever a vida social da época com muitos detalhes, inserir dados externos como a ética, a ironia e a moral no seu discurso. Ficcionalizando os fatos históricos, Ishikawa encontra liberdade para expressar a sua visão crítica, além de utilizar um dado externo que não caberia na história positivista: a ironia.

Para os críticos japoneses, Ishikawa abraçou um projeto social ao assumir a tarefa de interpretar as crises políticas e sociais contemporâneas. Sua literatura de denúncia, com ideias politicamente perigosas para a época, atingiu o seu auge ao dar voz a uma classe renegada pelo governo e pela própria sociedade japonesa.

 

 


 

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