Lica Hashimoto

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Caros leitores, devo admitir que, quando recebi o convite para contar a minha experiência como tradutora, senti um friozinho na barriga. Afinal, não é sempre que temos a oportunidade de conversar com o público que lê as obras que traduzimos.

Lica Hashimoto

 

O presente

 

Vou contar uma história que aconteceu comigo há cinco anos.

Um amigo, que há tempos não via, me deu de presente um livro do Natsume Sōseki chamado E depois.

De início, estranhei o presente, mas agradeci. Enquanto eu apreciava a capa e sentia o cheiro gostoso de livro novo, ele comentou:

– Eu me identifiquei com o protagonista. Acho que sou meio-Daisuke. Gosto de caminhar, aprecio as belezas da vida e aprendi a conviver com a minha ansiedade. Também gostei do Kadono. Morri de rir com ele. Toda vez que eu vejo um formigueiro, lembro dele hahaha. Mas, falando sério, quero te dar o livro porque o autor é a cara do seu avô! Dá só uma olhada na foto que colocaram na orelha do livro. Viu só? Cara de um fucinho de outro. Ambos nasceram no período Meiji – explicou meu amigo, com ares de professor.

Agradeci novamente o presente e o carinho manifesto.

Três anos depois, esse meu amigo me telefonou. Toda vez que a gente se vê ou se fala, tenho a impressão de que estive com ele no dia anterior. Ele começou a falar e a rir ao mesmo tempo:

– Descobri quem traduziu aquele livro. Estou me sentindo Kadono, hahaha.

Ele não parava de rir. Pensando bem, não é para menos. Quem é que vai dar de presente um livro para o tradutor desse livro?

Bem, risos à parte, expliquei para o meu amigo que aquele presente foi muito significativo para mim. Disse que, ao ganhar aquele livro, eu me permiti ser leitora. Uma leitora sem a responsabilidade de traduzir uma obra inédita do Natsume Sōseki, de 1909, para a língua portuguesa do Brasil. Uma leitora que não precisa fazer uma análise do texto nem apreender o estilo do autor. Uma leitora que não precisava criar glossários, fazer a seleção lexical, mapear sites de consulta confiáveis, realizar pesquisas de conteúdo específico e de referência. Enfim, disse-lhe que, graças a ele, tive o prazer de ler a obra no meu ritmo, às vezes, acompanhada de uma xícara de café ou de chá e outras de uma taça de vinho.

E é assim que gosto de imaginar o leitor das obras que traduzo. Apreciando a leitura do seu jeito no seu ritmo e se permitindo viajar na máquina do tempo para conhecer outros tempos, outras vidas, outros mundos e que, ao retornar para o presente de suas vidas, sintam que a viagem valeu a pena.

 

Daisuke colocou o livro aberto virado sobre a mesa e se levantou. Da pequena fresta da janela aberta para a varanda, um vento fresco e agradável adentrou, balançando suavemente as pétalas vermelhas das flores de amaranto plantadas num vaso. Os raios de sol incidiam sobre a enorme flor. Daisuke se curvou aproximando-se dela. Retirou o pólen da extremidade larga do estame e o ajeitou delicadamente na ponta do pistilo.
— É formiga? — peguntou Kadono ao entrar pela porta da frente. Ele vestia um hakama. Daisuke levantou o rosto e olhou para ele, ainda curvado.
— (…) Se for formiga, acho melhor colocar óleo vegetal. Quando elas ficarem sufocadas e começarem a sair do buraco, é só ir matando uma a uma. Se quiser, eu mato.

[ SOSEKI, 2011, p.53 ]

 


 

Lica Hashimoto nasceu em São Paulo e é neta de japoneses. Fez graduação, mestrado e doutorado na área de Letras, com ênfase no par linguístico japonês-português, pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é docente, palestrante, consultora, tradutora e autora de livros e artigos relacionados à Língua e Literatura Japonesa e Brasileira. Exerce a função administrativa de Coordenadora do curso de Letras Japonês, Vice Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa e Presidente da Comissão de Acessibilidade da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Na década de 1990 foi tradutora técnica da NEC do Brasil S.A., ministrou aulas de japonês na Aliança Cultural Brasil Japão e trabalhou na seção cultural do Consulado Geral do Japão em São Paulo.

Sua primeira tradução a ser publicada comercialmente foi o romance Os Amigos, de Kazumi Yumoto, em 2000, que ganhou o prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, categoria melhor tradução. Na década de 2010, teve a maior atividade da sua carreira até o presente momento, com a publicação de dezessete traduções. Ao longo da sua carreira, também traduziu Haruki Murakami, Sōseki Natsume, Kyōichi Katayama, Toshiki Okada, Banana Yoshimoto e Sei Shōnagon. [lista de traduções]

 


 

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