Lica Hashimoto – Um relacionamento singular

Tradução em Foco > Um relacionamento singular

 

A minha relação com a literatura e a tradução sempre foi especial.

Desde a graduação, eu sempre tive muita dificuldade de aprender kanji (ideograma) e de assimilar as estruturas da língua japonesa de nível intermediário e avançado. A cada semestre, tinha ímpetos de desistir do japonês e, crises de choro, de não saber o que fazer para não morrer de fome. Muitas vezes, o desespero se intensificava quando eu percebia que os anos da graduação não seriam suficientes para eu conseguir um bom trabalho na área. Mas as oportunidades surgem quando paramos de nos comparar com os outros – no caso, com aqueles que já possuíam proficiência de berço – e comecei a prestar atenção nas minhas necessidades e assumir o papel de protagonista da minha vida. Descobri que a leitura de textos literários facilitava a memorização dos ideogramas e que, ao tentar ler e entender as histórias, conseguia aprender as estruturas da língua de um jeito prático, eficiente e gostoso. Foi um divisor de águas.

 

Minha cabeça está um pouco confusa.
Minhacabeçaestáumpoucoconfusa.
Meus pensamentos ecoam de leve na escuridão. Meus pensamentos ecoam…

Mais uma vez respirei profundamente e expulsei da mente as imagens que não faziam sentido. Preciso agir. Não é mesmo? […]
O tempo e o espaço se confundem.
Otempoeoespaçoseconfundem.
Segui em direção à luz.

Na silenciosa escuridão prossegui, tateando a parede. Resolvi não pensar em mais nada. Era inútil ficar pensando. Estava apenas perdendo tempo. Sem pensar em mais nada, concentrei-me em caminhar para a frente. Com atenção e firmeza.

[ MURAKAMI, H., 2015, p.101-102 ]

 

Hoje, fazendo uma retrospectiva da minha carreira de tradutor, posso afirmar, sem nenhum constrangimento, de que o emprego de professora é que me proporcionou a oportunidade de não desistir das traduções literárias.

Para aqueles que querem ser tradutores, o meu conselho é que entrem nesta área com o pé no chão e que não tenham a ilusão de que ganharão rios de dinheiro logo de cara. Seja como for, é importante reservar algumas horas por dia para se dedicar à tradução e, paralelamente, aprender a planejar o tempo, ser organizado e sistematizar o ato tradutório. Por exemplo: fazer um levantamento detalhado e ‘sincero’ das dificuldades encontradas no texto.

O que me mantinha motivada a manter esta dupla jornada de trabalho, no início da minha carreira, foi utilizar o texto como material para aprender o japonês. Para não estragar o livro, no começo eu costumava tirar uma cópia deste e marcava todos os ideogramas que não conseguia ler e, também, assinalava a frase ou o enunciado com asterisco. Os primeiros textos eram bem coloridos e repletos de estrelinhas (risos). Com o tempo e a experiência, o texto voltou a ser monocromático e com dois ou três asteriscos a cada cem, duzentas páginas. O importante, portanto, é ser perseverante e aprender com cada texto, cada obra. É importante que o tempo dedicado à tradução se torne um tempo para aprender e aprimorar o japonês, melhorar o português e apreciar uma história que você, como tradutor, tem o privilégio de conhecer em primeira mão antes de torná-la acessível para o público brasileiro. Nunca subestime o poder da tradução.

Com o tempo, eu criei o meu leitor imaginário e é para ele que traduzo. O meu leitor é brasileiro, não conhece a língua japonesa, não tem contato com japoneses ou descendentes, não frequenta associações japonesas, mas respeita a cultura japonesa. É um leitor que não tem tempo ou intenção de estudar japonês e que, por isso, depende de mim para ler a obra. Este é o meu leitor e é para ele que imagino escrever.

Estudei Letras Japonês e Português na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e, durante a graduação, fui agraciada com uma Bolsa do Ministério da Educação do Japão (atual MEXT). Durante um ano e meio, estudei Língua e Cultura Japonesa na Universidade Waseda em Tóquio. A alegria de ter sido aprovada como bolsista do governo japonês veio acompanhada de uma dor. Dois meses antes de eu embarcar para o Japão, minha avó materna faleceu aos oitenta e seis anos. A motivação de eu estudar japonês era, dentre outras, a de conversar com a minha avó em japonês.

Após me formar em 1992, trabalhei como tradutora técnica durante dois anos na NEC do Brasil S.A e continuei outros três como autônoma. Formei uma cartela de clientes respeitáveis, mas após um período de intenso trabalho – a ponto de me tornar workaholic – sentia que a motivação de outrora deixou de existir. O prazer que eu sentia de traduzir manuais de instruções, bulas e rótulos de remédio, apostilas, artigos científicos, normas, treinamentos e códigos de conduta, especificações de fábrica deu lugar a uma insondável tristeza e profunda angústia de como estava conduzindo a minha vida.

Em 2000, resolvi voltar a estudar. Fiz o mestrado no programa de pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa e, posteriormente o doutorado em Literatura Brasileira. Atualmente, sou docente de literatura japonesa da USP e traduzi cerca de vinte obras de literatura japonesa, do clássico ao contemporâneo.

A tradução era uma profissão que permitia eu trabalhar em casa, enquanto meus filhos ainda eram pequenos. Fazia parte da rotina digitar o texto com meu filho no colo, ou ler o texto traduzido embalando minha filha para dormir.

 

Aki estava pálida, ainda anêmica. Continuava fazendo transfusões. Seus cabelos já tinham caído quase por completo.
– Você acha que existe um motivo para que uma pessoa morra? – perguntei.
– Acho.
– Se existe um motivo para a morte, por que então as pessoas tentam evitá-la?
– É porque nós ainda não entendemos direito o que é a morte.
– Você se lembra da vez em que conversamos sobre o reino dos céus? Você disse que não acreditava que houvesse um mundo após a morte, ou um paraíso.
– Lembro.
– Se existe um sentido para a morte, não seria incoerente negar a existência de um mundo após ela, ou um paraíso?
– Por quê?
– Porque se a morte representa o fim de tudo, e que não existe mais nada depois dela, então não vejo nenhum sentido em morrer.
Aki olhou para a janela e parecia refletir. A torre branca do Shiroyama aparecia por entre as densas e viçosas copas das árvores. Alguns milhafes sobrevoavam o castelo.
– Eu acho que nós já temos tudo de que precisamos – disse ela, depois de um tempo, tentando encontrar as palavras. – Temos tudo; não nos falta nada. É por isso que não vejo sentido em pedir a Deus o que nos falta, ou buscar essas coisas num mundo após a morte. Afinal de contas, temos tudo aqui. Por isso, acho que o mais importante não é pedir, mas saber encontrar o que queremos. – Após uma pausa, prosseguiu: – Acho que o que não existe aqui, após a morte, continuará a não existir. Somente o que já existe é que continuará após a morte. Não sei como explicar isso direito.   
– Quer dizer que, se eu gosto de você aqui e agora, isso significa que esse sentimento irá se perpetuar para além da morte. É isso? – falei, tentando entender o seu raciocínio.
–  É isso – concordou Aki. – Era exatamente isso que eu estava tentando dizer. É por isso que não há motivos para tristeza ou medo.

[ KATAYAMA, 2011, p.98-99 ]

 


 

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