Lica Hashimoto – Tradutor literário no Brasil – o ideal e a prática

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No mundo acadêmico aprendemos com Lawrence Venuti em The translator’s invisibility que os tradutores devem figurar ocultos, às sombras. O tradutor literário faz parte de uma equipe de profissionais que reúne editor (es), preparadores, diagramadores, revisores, capistas e diversos outros profissionais que trabalham com afinco para que a edição fique pronta e cumpra a missão de se encontrar com o leitor. São nomes que constam na ficha catalográfica da folha de guarda e que, literalmente, ficam ‘guardadas’ até que alguém tenha a curiosidade de saber quem são os responsáveis pela edição. Coisa rara. A maioria quer apenas ler o livro e ponto final.

No entanto, devo ressaltar que a prática de o nome do tradutor constar na folha de rosto é recente e está diretamente relacionada a se considerar a tradução de ficção como recriação derivada da criatividade do tradutor. Paulo Bezerra no artigo A tradução como criação ressalta que o processo tradutório é um processo criador e, por consequência, a tradução também é criação, pois nela interagem duas instâncias criadoras – o autor do original e seu tradutor.

A tradução literária tem despertado o interesse de jovens estudantes de Letras em todo o país e a expectativa é a de se formar profissionais aptos a atuar no mercado de trabalho e alavancar a quantidade de títulos traduzidos diretamente do japonês. Nesse sentido, o curso de Letras Japonês da Universidade de São Paulo possui Grupos de pesquisa e Projetos voltados à prática de traduções de textos clássicos e modernos.

 

 

Tradução – Quinta habilidade linguística

As quatro habilidades linguísticas que nos permitem agir socialmente no uso da língua são “escutar, falar, ler e escrever”. Atualmente, o diálogo entre a área do ensino de línguas estrangeiras e os estudos da tradução estão mais próximos e, como resultado, materiais didáticos para desenvolver a habilidade comunicativa estão sendo publicados no âmbito do ensino/aprendizagem de vocabulário, a conscientização gramatical, a sensibilização para aspectos pragmáticos e a competência linguístico-cultural.

As reflexões sobre a tradução dos pares linguísticos japonês-português no Brasil são temas de estudo que envolvem pesquisadores, professores e alunos de diversos níveis de proficiência de japonês. O primeiro trabalho realizado pelo Grupo de Estudos de Tradução Japonês-Português da USP intitulado A prática de tradução literária japonês-português de Momotarō (Menino Pêssego) de Ryūnosuke Akutagawa está disponível em e-book. Os cinco alunos tradutores que participaram do projeto apresentam suas traduções, reflexões e apontam as principais dificuldades e as respectivas estratégias de tradução para o entendimento na língua portuguesa. Um dos objetivos do Projeto consistiu em reunir alunos com diferentes níveis de proficiência de japonês para ampliar o vocabulário, o aprendizado de ideogramas e o conhecimento das culturas japonesa e brasileira por meio do exercício da tradução individual.

No entanto, precisamos ter em mente que, como em qualquer área ou ramo de atividade, o início de carreira não deixa de ser uma espécie de provação tanto no nível pessoal quanto no profissional. É sabido que o mercado editorial brasileiro não oferece uma remuneração que permita ao tradutor viver somente de suas traduções literárias. Isso porque existem inúmeros fatores que estão vinculados à demanda, tempo de tradução, repercussão da obra etc. Sem contar com um fator limitante que é o rendimento do tradutor. No começo, é comum levar duas, três horas para traduzir uma única página escrita em língua moderna ou levar dias para traduzir um poema do clássico. Por isso, se a pessoa quer investir nesta área, é importante que, no começo, ela tenha uma fonte de renda para garantir o seu sustento. Esta é a prática que observo há décadas e que, sem dúvida, está longe do ideal. O trabalho de tradução é como o de um ourives, com uma diferença – em vez de lapidar a pedra bruta para torná-la diamante, o tradutor lapida o seu próprio texto para que se torne uma obra literária de igual dimensão do original.

Obviamente, neste campo de trabalho também há exceções. Existem tradutores que podem se dedicar integralmente à profissão independentemente da remuneração obtida. Mas para os que ainda não estão nesta situação, existe a possibilidade de desenvolver o ofício utilizando outras estratégias de ação.

Gostaria de compartilhar uma história que nos ensina a importância de assumir a responsabilidade pelas nossas escolhas:

 

– Certa vez, eu li uma história sobre três irmãos que foram parar numa certa ilha lá do Havaí. É uma mitologia, ok? Daquelas bem antigas. Eu ainda era criança quando li esta história, e por isso não me lembro direito, mas é mais ou menos assim… Três rapazes saíram para pescar e, ao se depararem com uma tempestade, o barco naufragou. Após ficarem um longo tempo à deriva, foram parar numa praia de uma ilha deserta. Era um lugar paradisíaco com inúmeros pés de coqueiros carregados de frutos. Bem no meio dessa ilha, uma montanha alta erguia-se imponente. Nessa mesma noite, Deus apareceu no sonho dos três e lhes disse: “Seguindo a praia, um pouco mais à frente, vocês encontrarão três rochas redondas, bem grandes. Cada um deve pegar a sua e rolando-a deve levá-la para onde quiser. O local em que vocês colocarem a rocha, será onde cada um irá viver. Quanto mais alto chegarem, melhor será a visão que terão do mundo. Até onde pretendem chegar?” – disse Deus – “Isso fica a critério de cada um”. (…)

– Como Deus lhes havia dito, os três irmãos encontraram três rochas grandes na praia. E, conforme as instruções, os três começaram a rolar suas respectivas rochas. Se já era penoso rolar uma rocha grande e pesada na praia, imagina só quando tiveram que subir a montanha empurrando-a. O irmão caçula foi o primeiro a falar: “Irmãos! Para mim, aqui está bom. É perto da praia e dá pra pescar. Tenho o suficiente para viver bem. Não me importo de não ver a vastidão do mundo.”  Os outros dois continuaram a subir. Mas, ao chegarem no meio da montanha, o irmão do meio disse: “Irmão! Para mim, aqui está bom. Frutas, aqui, são abundantes e terei o suficiente para viver bem. Não me importo de não ver a vastidão do mundo.” E, assim, o irmão mais velho continuou a subir. O caminho foi ficando cada vez mais estreito e íngreme, mesmo assim ele não desistiu. Era uma pessoa muito perseverante e seu desejo era o de ver a vastidão do mundo, mesmo que fosse apenas uma parte dela. E, na medida do possível, foi empurrando a rocha para o alto. Foram vários meses de contínuo esforço, com escassez de comida e bebida, até finalmente conseguir alcançar o topo da montanha. Ao chegar lá, ele parou e contemplou o mundo. Naquele momento, ele era o primeiro homem que tinha a visão mais ampla daquela vastidão. Ali seria o lugar em que passaria a viver: um lugar sem plantas e que nem pássaros sobrevoavam. Água, somente lambendo o gelo ou o orvalho e, comida, só mesmo mastigando musgos. Mas ele não se arrependeu. Isso porque conseguiu ver o mundo… E é por isso que, até hoje, nessa ilha do Havaí há uma montanha bem alta, com uma rocha redonda, bem grande, no topo dela. E essa é a história.
Silêncio.
Por fim, Mari pergunta:
– Por acaso essa história é daquelas que tem um ensinamento, uma moral ou coisa parecida?
– Creio que há pelo menos duas lições. A primeira é que… – o rapaz levanta um dedo – cada um é diferente do outro, independentemente de serem irmãos, e a segunda coisa é que… – o rapaz levanta mais um dedo – se uma pessoa quer realmente conhecer algo, deve estar ciente do preço a ser pago.
– Pra mim, as vidas que os dois irmãos mais novos escolheram viver fazem mais sentido – opina Mari.
– Concordo – admite o rapaz. – Acho que ninguém gostaria de viver no Havaí lambendo geada e comendo musgos, não é mesmo? Com certeza! Mas, para o irmão mais velho, era impossível ignorar a curiosidade de poder contemplar a vastidão do mundo. Mesmo que para isso o preço pago tenha sido tão alto.

[ MURAKAMI, H., 2009, p.21-23 ]

 


 

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