Thiago Nojiri – Agora, sim, “botando a mão na massa” pra valer

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Então, esse foi o resumo da primeira metade da minha jornada. Foram quatro (quase cinco) anos na Editora JBC, aprendendo e crescendo, deixando de ser apenas um “cara que sabe japonês” para ser um “talvez profissional do mercado editorial”.

Durante o tempo que fiquei na JBC, eu cheguei a traduzir bastante coisa não-relacionada a mangás por fora, mas mangá mesmo, só posso dizer que traduzi o Blade – A Lâmina do Imortal. E, mesmo ele, na verdade foi mais uma reconstrução do que a Drik tinha feito para a Conrad Editora na primeira vez que foi lançado no Brasil.

 

Conrad Editora / Editora JBC. Foto: Thiago Nojiri

 

Apesar disso, eu tenho um carinho mais do que especial por Blade, não só porque eu sou fã de carteirinha do autor Hiroaki Samura, mas principalmente porque ele é um mangá com muitas camadas de complexidade, por ela ser uma obra histórica que se passa no final do Período Edo, porém, com vários momentos de liberdades artísticas que ignoram completamente os fatos verídicos. Para quem ainda não leu e se interessa por uma excelente história de samurai, Blade não vai decepcionar de jeito nenhum, eu garanto.

E, aproveitando o gancho, permita-me falar então da parte da minha jornada em que a única coisa que fiz foi traduzir. Traduzir sem parar, o quanto o tempo permitisse, tradução atrás de tradução.

Em agosto de 2016, eu tive a oportunidade de conversar com o Junior Fonseca, o diretor e fundador da NewPOP Editora, e foi quando decidi que poderia evoluir mais ainda saindo da JBC. Afinal, ainda faltava fazer aquilo que me define hoje: viver de tradução; e foi justamente isso que eu iria fazer na NewPOP.

Em um primeiro momento, tinha sido acordado que eu traduziria dois mangás ou uma light novel por mês, variando de acordo com o que estivesse sendo lançado. Particularmente, eu me identifico muito com o catálogo da NewPOP, por trazer obras mais recentes e modernas, em vez de ficar apenas nos clássicos seguros como em outras editoras. E incluo as light novels nisso, já que a NewPOP é a única editora no Brasil que lança de forma consistente este formato de livro.

A partir disso, comecei a traduzir tudo que o Junior precisava, e o que ele mais precisava naquela época era de tradução de light novels. Não vou me estender aqui explicando exatamente o que são as light novels (fiz um texto no Medium explicando em detalhes, podem conferir por lá), mas são basicamente livros de romance como outros quaisquer, porém com algumas peculiaridades que só se aplicam ao mercado japonês. Para nós, aqui no Brasil, são apenas livros japoneses.

E, minha nossa senhora… Como a tradução de livro é exaustiva e intensa. As light novels, em média, possuem entre 300 a 400 páginas por volume, o que já é bastante coisa para se fazer em um mês, mas soma-se a isso uma das peculiaridades que citei acima, que é a liberdade na forma como o autor a escreve.

Vou tentar explicar usando como exemplo as obras que traduzi: Re:Zero – Começando uma Vida em Outro Mundo, No Game No Life e Shakugan no Shana. Em Re:Zero, o autor era apenas um amador que nunca tinha feito outros livros na vida e, logo no seu primeiro, encontrou um sucesso estrondoso. Veja, não estou dizendo que a narrativa dele é ruim, pelo contrário, Re:Zero é muito bem amarrado do ponto de vista de roteiro, porém o seu universo é extremamente vasto. É a obra da vida do autor, então ele coloca tudo que quer colocar, algo que só é viável em um formato de 400 páginas por mais de 20 volumes (e ainda inacabado). Ou seja, existem detalhes e mais detalhes que não acabam mais, e apenas um pequeno deslize na tradução pode resultar em uma incoerência no futuro, então eu precisava estar constantemente atento à forma que cada personagem se comportava, aos termos, às informações aparentemente inofensivas, etc.

 

NewPop Editora / Foto: Thiago Nojiri

 

Já em No Game No Life, que é provavelmente a tradução mais difícil que já fiz em toda a minha vida, o autor Yuu Kamiya (que é brasileiro) usa e abusa de neologismos e regionalismos durante a narrativa. Para piorar, a figura do narrador é mista, ela é tanto o protagonista Sora, como um narrador onisciente na ausência deste. Então, do ponto de vista técnico, No Game No Life tem um nível bastante elevado de complexidade, pois: 1) é necessário saber interpretar os neologismos; 2) é necessário conhecer os regionalismos; 3) é necessário saber julgar quem está narrando; e 4) é necessário que isso tudo seja transmitido com uma linguagem relativamente informal, atual e “jovem”, pois a obra é sobre games. E fazer 400 páginas disso foi realmente um grande desafio.

Por fim, em Shakugan no Shana, que é um livro um pouco mais antigo que os anteriores, ainda que não tenha tanta complexidade em termos de forma da narrativa, se aproximando de um romance “tradicional”, é uma obra de ação frenética (é assim que próprio autor frequentemente a descreve nos posfácios) e a todo momento alguma cena de ação está sendo detalhadamente descrita, algo que é um recurso visualmente natural quando escrito em japonês, porém muito difícil de transpor em português por conta da ordem em que os acontecimentos devem ser narrados. Por exemplo, em japonês, podemos escrever desta forma: “contra o inimigo que veio pelo flanco esquerdo, a garota pegou a espada com a mão direita e a brandiu no sentido contrário” (左方向から来た敵に対し、少女は右手で取った刀を逆方向に振った。). Ainda que a frase faça sentido e esteja na ordem cronológica dos acontecimentos, em português, é mais natural descrever da seguinte maneira: “A garota brandiu a espada que pegou com a sua mão direita no sentido contrário ao inimigo que vinha pelo flanco esquerdo”. E esse tipo de “reorganização” das frases é bastante constante, e muitas vezes eu me via em situações onde a descrição da cena era exageradamente longa e se eu devia ou não manter a tradução na mesma ordem do original.

Bem, essas foram algumas das dificuldades próprias de uma tradução de light novels, em comparação à tradução de mangás. Certamente muitas coisas são intercambiáveis e não há nada que seja exclusivo de uma mídia, apenas elementos que são mais ou menos presentes.

E, já que comentei sobre mangás, vamos falar um pouco deles. Até o momento, tive o prazer de traduzir obras divertidíssimas e bastante diversas, desde clássicos como Devilman ou Kamen Rider, passando por BLs como Given, autobiografias como Minha Experiência Lésbica com a Solidão e até hentais como As Mulheres e Seus Segredos.

 

Foto: Thiago Nojiri

 

Mas, para este momento, quero falar de duas obras em específico: Devilman e Given, no intuito de ilustrar um ponto que eu acho muito interessante na tradução e que muitas vezes parece passar despercebido.

À primeira vista, obras antigas como Devilman (ou os Tezuka, Kamen Rider, Yamato, etc.) parecem ser mais fáceis de serem traduzidas, justamente porque os quadrinhos não são tão caóticos (assemelhando-se a um formato de tirinhas) e os textos são mais simples. Enquanto que obras recentes e modernas como Minha Experiência Lésbica com a Solidão (ou Given e Houseki no Kuni) são mais “difíceis” porque os autores passaram a abusar mais de recursos visuais e de textos longos com profundidade.

Até certo ponto, essa premissa é verdadeira. Se visto do ponto de vista objetivo, realmente, os mangás de cinquenta anos atrás são mais simples. Porém, na minha experiência (e falo aqui exclusivamente de mim), eu sempre tive mais dificuldade em traduzir clássicos do que os mangás recentes, e toda vez me perguntava o motivo por trás dessa sensação.

Pois acho que cheguei a uma resposta e compartilho aqui com todos: a evolução e modernização na técnica de fazimento de mangás, não só por parte dos autores, mas dos editores também.

Muitas vezes, quando pegamos obras antigas, a única coisa que prestamos atenção em comparação às obras recentes é o traço do desenho. Por bem ou por mal, é inegável que mangás antigos têm um desenho “datado”. Mas este não é o nosso interesse aqui, que mexemos com textos. Da mesma forma que os traços dos desenhos mudaram, a estrutura da narrativa, a escolha das palavras e a disposição dos quadrinhos também mudaram com o passar do tempo.

Veja, não estou aqui para fazer um julgamento da qualidade de uma obra ou outra, os clássicos são clássicos por um motivo e longe de mim dizer que mangás mais recentes são melhores só por serem recentes.

Muito bem, vamos pegar o Devilman. Para quem ainda não leu, recomendo fortemente a leitura, ela acontece com uma fluidez que quase não se vê mesmo nos mangás atuais. E esse é o meu primeiro e maior ponto sobre a dificuldade de traduzir obras deste tipo: muitas vezes, elas foram pioneiras em alguns recursos que estão utilizando. O Go Nagai, em especial, foi literalmente o primeiro a fazer certas coisas em seus mangás, ele foi precursor em utilizar alguns recursos que hoje são tão comuns. Por isso mesmo, a forma como o Go Nagai estrutura a própria narrativa e constrói os balões é quase “experimental”, mas que funciona como uma luva dentro de suas obras. O problema, é que quando nós pegamos para traduzir, por mais que as falas dos personagens sejam simples, a disposição e a ordem de como eles acontecem não é tão natural como em narrativas recentes. E isso se agrava mais ainda em português, pelo motivo da ordem das frases que comentei no parágrafo sobre Shakugan no Shana. E, como se não bastasse, diferentemente de livros, em um mangá, muitas vezes não é possível alterar a ordem dos balões, pois eles estão diretamente atrelados a um desenho.

A segunda dificuldade são os “vícios” narrativos próprios da época, e aqui volto à questão da evolução no fazimento dos mangás por parte dos autores e editores. Como disse há pouco, mangakás como o Go Nagai foram precursores da indústria, ninguém tinha feito nada igual antes. E, justamente por isso, mangás dessa época acabam apresentando alguns “defeitos” de narrativa que, hoje em dia, já foram superados. Dois exemplos mais claros que trago aqui são: 1) balões e personagens explicativos, ou seja, em vez de ilustrar a cena com o desenho, o autor coloca um personagem que, de forma pouco natural, narra para o leitor o que está acontecendo; e 2) a repetição exaustiva das mesmas frases ou conceitos, também de forma pouco natural, onde acontecem diálogos como: “O meu nome é Thiago, o tradutor”, “Quê? Então, você é Thiago, o tradutor!”. Esse tipo de construção de narrativa, por mais que seja um reflexo da época e eu tente respeitar ao máximo a forma como está no original, na hora de traduzir, requer uma criatividade extra, pois o português é muito mais impiedoso que o japonês. Se em japonês já fica pouco natural, em português, então, a coisa se agrava exponencialmente se traduzido ao pé da letra.

Existem muitos outros vícios que quem já leu mangás certamente vai se lembrar, e se nós leitores percebemos esses vícios, com certeza os autores e editores que cresceram lendo clássicos também perceberam. Por isso, quando eu pego um mangá como Given, que é uma obra simplesmente excepcional do ponto de vista de criação e edição, sinto que a tradução flui mais naturalmente, pois os vícios já não estão mais tão presentes, graças aos longos anos de evolução da estrutura do mangá e a busca incessante para se fazer obras cada vez melhores.

 

 


 

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