Jaqueline Mami Nabeta – As entrelinhas da tradução
Tradução em Foco > As entrelinhas da tradução
Feito o introito, gostaria de comentar a gestação da obra em português a partir do ponto de vista comentado anteriormente.
Confissões de uma máscara é o primeiro romance de sucesso de Yukio Mishima, publicado em 1949, quando o autor tinha apenas vinte e quatro anos de idade. Narrado em primeira pessoa, tem riqueza de elementos autobiográficos. Conta a infância e juventude do personagem principal, Koo, fase da vida em que descobre suas inclinações homossexuais.
O romance se abre com um trecho de Os irmãos Karamazov de Dostoiévski, já dando mostra do profundo conhecimento do escritor da literatura ocidental. Conhecimento que se soma ao que tinha do Japão clássico, considerado superior a de seus contemporâneos.
Logo de início compreendi que o trabalho de pesquisa seria árduo. Pesquisa que é feita não somente para se obter informação sobre a obra, o autor citado e, portanto, para que o tradutor tenha melhor embasamento para trabalhar, mas também por causa de uma ordem mais prática: a grafia correta desses nomes. Porque quem conhece a língua japonesa deve saber que as palavras de origem estrangeira são escritas em katakana, o que dificulta muito a identificação da grafia original.
E as citações continuam: Andersen, Huysmans, Wilde, Whitman, Stephan Zweig e não somente escritores e poetas mas, por exemplo, Hirschfeld, médico e sexólogo, e a famosa pintura de São Sebastião de Guido Reni.
Pintura essa que provocou a antológica cena da primeira ejaculação do personagem principal. Sem dúvida fui em busca da pintura a fim de também me munir para a tradução do poema em prosa que o protagonista escreve, anos depois, em homenagem ao santo.
Particularmente falando, este poema é um dos trechos do livro que mais me comoveu pelo lirismo, pela poesia que é inata em Mishima, apesar de muitas vezes ficar camuflada pelo seu ceticismo.
Certo dia, avistei da janela da sala de aula uma árvore não muito alta que balançava ao sabor do vento. À medida que a observava, meu peito ia se inquietando. Era uma árvore belíssima. Erguia-se sobre a relva como um perfeito triângulo arredondado; os diversos galhos, que se estendiam em simetria, como um candelabro, sustentavam folhas verdes e aparentemente pesadas, e sob a folhagem mostrava-se um tronco inabalável, feito um carrancudo pedestal de ébano. (…) “Não foi essa árvore?”, perguntei-me de repente. “Aquela em que o jovem santo foi amarrado com as mãos para trás, em cujo tronco seu sangue puro verteu como gotículas após a chuva? (…)” (…) Era de uma arrogância encantadora. Levava no elmo um lírio branco, oferecido todas as manhãs pelas donzelas da cidade. Enquanto descansava de intensos treinamentos, a flor acompanhava as curvas de seus cabelos viris, e a forma graciosa como pendia lembrava a nuca de um cisne. (…)
(MISHIMA, 2004, p. 39 – 40)
Por outro lado, tive que, obviamente, pesquisar alguns nomes de personalidades contemporâneas ao escritor e de personagens, por exemplo, de peça de kabuki.
A noite ergueu sua cortina bem diante dos meus olhos. No palco, Shokyokusai Tenkatsu.* (…)
(MISHIMA, 2004, p. 19)Bem sabia eu que, no quarto das criadas, ele as divertia com imitações da princesa Yaegaki.*
(MISHIMA, 2004, p. 22)
Aproveitando os trechos mencionados, gostaria de falar sobre notas de rodapé. Nesses dois casos, optei por usá-las para auxiliar o leitor na contextualização. Por vezes, preferi deixar algumas palavras no original em japonês e lançar mão desse recurso para manter o contexto temporal da obra, mesmo porque não há sinônimos em português.
O fato é que, mais tarde, esses mesmos sentimentos se transferiram para os condutores de hana-densha* (…)
(MISHIMA, 2004, p. 14)
Alguns editores, porém, não gostam muito das notas de rodapé do tradutor (risos). Mas é compreensível tal desapreço, de outra forma, dependendo do que está sendo traduzido, poderá haver mais notas de rodapé do que o próprio texto traduzido. Nesse caso, é o bom senso do tradutor que deve ser posto em ação.
Em seguida passou o jicho,* carregando a urna de oferendas enfeitada com o shimenawa, o cordão sagrado que impede a entrada de impurezas em lugares santos.
(MISHIMA, 2004, p. 30)
Esse trecho ilustra bem o que foi comentado anteriormente. A palavra jicho recebeu a nota de rodapé, mas para que não ficassem duas em seguida, a explicação de shimenawa foi incorporada ao texto, um recurso muito utilizado nas traduções.
Retomando a questão das imagens mentais que nós leitores criamos quando lemos uma obra literária, são várias as que ainda hoje brotam do meu subconsciente. A famosa cena do banquete antropofágico certamente é uma delas. Mas aqui gostaria de comentar sobre uma outra – a passagem do omikoshi, bem em frente da residência do protagonista, durante as festividades de verão.
(…) aproximou-se o majestoso omikoshi em preto e dourado, o principal santuário da procissão. Mesmo de certa distância já se avistava a fênix no topo, balançando radiante de um lado para o outro, como um pássaro que flutua ao sabor das ondas, ao som ritmado dos gritos daqueles que o traziam. (…) O omikoshi estava bem diante de nossos olhos. Os jovens, vestidos com o mesmo tipo de yukata,* que revelava seus corpos quase por inteiro, agitavam-no sem cessar, como se o próprio santuário cambaleasse embriagado. Pernas embaraçavam-se, os olhos não pareciam enxergar coisas deste mundo. Um rapaz, carregando um enorme leque, corria ao redor do grupo e o incitava com gritos maravilhosamente estridentes. Às vezes, o omikoshi pendia vacilante para um lado. E então, mais uma vez, brados ensandecidos o reerguiam.
(MISHIMA, 2004, p. 30, 31)
Quando li esse trecho no original, me vi no meio da procissão, sendo sugada por essa energia ao mesmo tempo sagrada e profana. E me empenhei para que o leitor em português pudesse sentir essa mesma vibração.
Aliás, com essa cena o narrador encerra os relatos de sua infância. O grupo de jovens que carregava o omikoshi acaba invadindo o jardim de sua casa, pisoteando tudo – como se lhe descerrasse os portões para novas descobertas de seu eu, para novos palcos onde teria que atuar além do sagrado círculo familiar.
Aproximava-se, pois, a hora de eu partir para a vida, fosse como fosse. (…)
(MISHIMA, 2004, p. 87)
Uma dificuldade que sinto quando traduzo textos em japonês são os períodos longos. Aqueles compostos por várias orações e que são um tanto permissíveis e comuns em textos escritos em japonês. Em português, no entanto, dá-se preferência aos períodos curtos.
Para um menino da minha idade, parecia peculiar que me faltasse o interesse pela “limpeza moral”, ou seja, que carecesse do talento psicológico para o “autocontrole”. Isso talvez se justificasse pelo fato de minha curiosidade demasiado intensa não permitir que eu me voltasse para o interesse moral, mas o fato que essa curiosidade assemelhava-se também ao anseio desesperançado pelo mundo exterior de um convalescente de longa data, ao mesmo tempo que se entrelaçava de forma inextricável à crença no impossível.
(MISHIMA, 2004, p. 92)
No original, o trecho acima consiste de um único período, o qual dividi em dois. O conhecimento da análise sintática (felizmente adorava análise sintática na época de estudante!) pode ser uma ferramenta importante para o tradutor no momento de decidir onde dividir o período sem que comprometa seu sentido – verificar o que se relaciona com o que, se é uma oração subordinada adjetiva, por exemplo, a qual está qualificando o que ou quem, etc.
Por comprometer o sentido inclui-se também a intenção do autor de escrever utilizando-se de períodos longos: a dita sintaxe “antenada”, com muitas orações coordenadas e/ou subjuntivas, é uma maneira de expor o conflito interior do personagem. Aliás, em Mishima e, em peculiar nesta obra, não há solução para esse conflito, a confissão não remete ao perdão, ao invés, permanece na penitência que deságua sempre num vazio.
Quantas não foram as vezes que “briguei” com ele – por que tem que escrever por linhas tão tortuosas? Por que não consegue ir direto ao ponto?
“É, no entanto, somente graças ao escritor que podemos ouvir sua voz por dentro e o rumor do próprio sangue.” (YOURCENAR, 2013, p. 11)
Por último, gostaria de comentar sobre a questão da tradução da tradução.
Como mencionei anteriormente, se tradução é criar, gerar uma obra da língua de partida para a de chegada, então, a tradução de uma tradução é uma “criação ao quadrado”. Confuso, mas devem concordar comigo que é sempre preferível, na medida do possível, traduzir a partir do texto original. Algumas sutilezas podem se perder nesse processo devido ao distanciamento do texto original.
Até algum tempo, era muito comum que obras literárias japonesas fossem traduzidas de traduções em inglês, talvez pela dificuldade que havia em se encontrar profissionais que pudessem fazer do original.
Foi o que aconteceu com Confissões de uma máscara: a primeira tradução para o português foi feita da obra em inglês.
Juntamente com o romance em japonês, a editora me emprestou as edições em inglês e essa em português. É muito comum que traduções em outras línguas, quando houver, sejam usadas para referências.
Gostaria de ilustrar com um trecho sobre o que comentei acima.
(…) Não era expressão de hostilidade nem de ódio, mas de algo imaculado, intenso, que vibrava em seu rosto como a corda de um arco.
(MISHIMA, 2004, p. 59)
No original em japonês, “a corda de um arco” é yuzuru (弓弦).
A palavra correspondente em inglês é bowstring.
(…) An immaculate, fierce something, neither hostility nor hatred, was vibrating there like a bowstring.
(MISHIMA, 1970, p. 70)
E, por alguma razão, na tradução em português feita do inglês ficou como “arco-íris”.
(…) Alguma coisa imaculada, selvagem, nem hostilidade, nem ódio, vibrava ali como um arco-íris.
(MISHIMA, 1976, p. 52)
Certamente o tradutor confundiu bowstring com rainbow.
Foi a primeira vez que sorri, desde que começara minha gestação que durou cerca de dez meses.
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