Drik Sada – Do mangá ao mangá

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Mangás têm sido uma presença constante na minha vida.

Desde criança, são entretenimento, fonte de informação, inspiração para as questões da vida e, por fim, tornaram-se meu ganha-pão.

Sempre digo que, quem me deu ferramentas para me profissionalizar não foi a escola nem a faculdade, foram meus pais. A forma como me educaram em casa valeu por qualquer curso técnico, superior ou profissionalizante. No caso, o curso mais longo do qual se tem notícia, pois estou longe de me formar, aos 50 anos de vida.

 

 

Começando do bê-á-bá em japonês, rigidamente imposto pelo meu pai, até o acesso irrestrito a livros e mangás de todos os gêneros, trazidos pela minha mãe, foi de nossa casa que saí com uma sólida bagagem linguística, capaz de me prover sustento como tradutora. O mágico é que nenhum dos dois agiu de caso pensado, mas tudo que fizeram acabaram por me formar a profissional que sou hoje.

O que eu lia na infância foge um pouco do cardápio de mangás que o leitor brasileiro conhece. Fui das revistas educativas da Editora Shogakukan (1) às revistas para meninas como a Friend, Nakayoshi (2), Margaret, Ribbon (3), Hana to Yume (4)… Lia a Magazine e a Jump (5) escondida, porque eram “coisas de menino”. Mas, sempre havia um jeito de dar uma espiada, geralmente, em alguma sala de espera do bairro da Liberdade.

Os leitores de hoje em dia não fazem ideia da raridade que era encontrar um mangá no Brasil, na década de 1970. Minha mãe mesma, as encomendava na antiga livraria Casa Ono. Os exemplares chegavam de navio, com três meses de atraso. Todo domingo, quando íamos à Feira Oriental da Praça da Liberdade, fuçávamos edições antigas num sebo de livros japoneses que ficava num porãozinho, minúsculo, da Rua dos Estudantes. Na pré-escola, frequentava aulas com filhos de expatriados japoneses (os chamados chuuzaiin, empregados de multinacionais japonesas temporariamente alocados na filial do Brasil) e, quando eles iam embora para o Japão, deixavam pilhas e pilhas de mangás para mim. Era meu Natal particular. Quando tive idade para frequentar sozinha a biblioteca do Bunkyo (6), não saí mais de lá. Também passei minha adolescência toda enfurnada no Centro Cultural São Paulo, descobrindo os The Beatles na discoteca e folheando gibis do mundo todo (7), afundada nos antigos sofás de lá. Sorte dos que nasceram uma geração depois da minha, que podem usufruir de uma biblioteca parruda como a da Fundação Japão de São Paulo.

 

 

Mangás ampliaram minha compreensão do mundo, principalmente, sobre o comportamento humano. É claro que personagens mocinhos me inspiraram a ser correta na vida, mas quem abriu, mesmo, a minha visão foram os vilões, os atormentados, os complexados, os que questionam se o correto é correto, de verdade. A narrativa de um mangá nos propicia observar a construção do pensamento de um antagonista e, muitas vezes, eu me identificava com eles. Era nessas horas que eu acompanhava a história com mais afinco, pois era como se consultasse um oráculo, para saber aonde me levaria o meu pensamento, a minha atitude, o meu comportamento daquele momento.

O interessante é que, nos mangás japoneses, nem todo vilão é extirpado como nas histórias de super-heróis, como se o mundo fosse dicotômico. Os antagonistas costumam ter sua chance de redenção. Foi assim que aprendi, desde cedo, que o mundo é feito em escalas de cinza. E que apenas o senso crítico e a empatia para com as fraquezas alheias me fariam humana o suficiente para fazer parte dele.

Do mangá, alimentei minha alma e, ao mangá, devolvo minha vivência, na forma de traduções, fechando o que considero o mais perfeito ciclo da minha vida.

 


 

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