Diogo Kaupatez – Engatinhando com os próprios braços e pernas

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Assim nasceu, em 2016, a C33 Editora.

Que inaugurou o catálogo com o romance O quarto tesouro, do Todd Shimoda, cuja narrativa se centra na Escola Daizen de Caligrafia, fundada em 1409 e que, a duras penas, sobreviveu ao conturbado período de batalhas entre clãs samurais, à ditadura dos xóguns Tokugawa e à modernização da era Meiji. Agora, sua longa tradição convergia na figura do vigésimo nono mestre da escola, Kiichi Shimano.

 

© C33 Editora / Foto Diogo Kaupatez

 

Contudo, Shimano não queria tal responsabilidade. Não mais.

Duas décadas depois, à frente de uma irrelevante escola de caligrafia em São Francisco, Shimano é vítima de um derrame que o faz perder a habilidade de se comunicar, uma tragédia que ironicamente abre as portas para sua reconciliação com o passado. Aprisionado dentro de si, o professor tenta manifestar suas emoções por meio da arte. Em perfeita cadência, O Quarto Tesouro alterna o passado feudal do Japão, os anos do boom da economia japonesa na década de 1970 e a São Francisco do início do século 20.

Na sequência, foi publicado O Belo Caminho: história da homossexualidade no Japão, do Gary P. Leupp. Relações homossexuais eram comuns no Japão pré-moderno, praticadas por monges budistas, samurais e cidadãos comuns, além de celebradas na arte e na literatura. O Belo Caminho aborda as origens da homossexualidade no Japão, sua disseminação nos monastérios budistas, nos clãs samurais e no teatro cabúqui, a prostituição masculina, as funções de ativo e passivo nas relações sexuais, a homossexualidade aos olhos da Lei, o fascínio pela androginia e o papel das mulheres no universo do amor entre homens.

Por fim, traduzi e publiquei o romance Cartas, do Keigo Higashino, que apresenta uma das facetas mais sombrias do Japão: a fórmula para derrubar a taxa de criminalidade a índices mínimos. O livro revela que a punição vai além da sentença — aliás, ela extrapola o criminoso para abranger sua família, seja atual ou futura. Seu irmão cometeu latrocínio? Trate de esquecer faculdade, um trabalho digno, uma namorada (ou namorado) de família de bem. As portas serão fechadas, porém de forma bastante educada, com verbos no futuro do pretérito. Será que, talvez, não seria melhor se você, quem sabe? Cartas é um choque de realidade.

 

© C33 Editora / Foto Diogo Kaupatez

 

A C33 acabou extrapolando a função de editora para se transformar em um veículo de divulgação do Japão pré-moderno, em especial o período Edo (1603-1868), foco dos meus estudos durante a graduação e o mestrado. Isso porque, de início, resolvi homenagear o tema da minha pós-graduação, o maior expoente do ukiyo-e, Katsushika Hokusai. Em 1834, aos 73 anos e no auge da sua arte, Hokusai publica As cem vistas do monte Fuji, série de xilogravuras que coroou sua obra. Mais que uma homenagem à montanha sagrada, Hokusai exalta o povo japonês, suas crenças e costumes. A delicada percepção do artista à rotina de camponeses, pescadores e artistas itinerantes é inspiradora e incentiva cada um de nós a valorizar as pequenas atividades encenadas (e repetidas) dia após dia, mostrando que o cotidiano é a morada da verdadeira poesia.

Aproveitei o ensejo e implementei uma plataforma de cursos online, que possibilitou a divulgação de temas centrais ao movimento estético ukiyo-e e de assuntos pouco aprofundados ao grande público. Até o momento, foram estruturadas oito apresentações, três delas dedicadas a esmiuçar as imagens que compõem os três volumes de As cem vistas do monte Fuji. A outra é um resumo do conteúdo de O Belo Caminho e se debruça sobre a história da homossexualidade no Japão. Em seguida, o curso “24 horas no dia de uma gueixa”. No Japão pré-moderno, a prostituição era legalizada e considerada pelas autoridades uma válvula de escape para samurais, entediados com a paz recém instaurada, e mercadores novos-ricos. Metrópoles como Edo, Quioto e Osaka passaram a agrupar seus bordéis e casas de chá em uma mesma região, denominada distritos dos prazeres. O curso apresenta as origens de Yoshiwara, o distrito dos prazeres mais famoso do Japão, localizado na capital Edo. Também mostra os costumes e tradições de prostitutas e gueixas de hierarquia elevada para, em seguida, deter-se na análise de duas séries de xilogravuras produzidas por dois mestres do ukiyo-e: “12 horas nos bordéis”, de Kitagawa Utamaro (1753-1806), e “Flagrantes em 24 horas”, de Toyohara Kunichika (1835-1900). O intervalo de um século entre as publicações possibilita acompanhar as mudanças nas tradições de Yoshiwara e no comportamento adequado a clientes e profissionais do sexo.

 

© C33 Editora / Foto Diogo Kaupatez

 

Os três cursos restantes homenageiam três famosas entidades do folclore japonês. Uma delas são as raposas, entidades complexas que podem possuir corpo físico ou se manifestar na forma de assombrações, dividir cemitérios com os mortos ou se apaixonar por humanos, com quem se casam e constituem família. Ainda são capazes de alcançar mil anos de idade e nove caudas — transformando-se em raposas celestiais, mensageiras da deusa da fertilidade Inari — ou então de utilizar seus incríveis poderes de manipulação para aterrorizar e destruir impérios. O outro é o tanuki, um fanfarrão dono de poderes magníficos — como a capacidade de se transformar em objetos animados e inanimados, produzir miragens e fogos-fátuos —, mas que prefere utilizá-los para se divertir enganando camponeses e imitando cerimoniais religiosos budistas, sempre acompanhado de doses cavalares de saquê e do som percussivo produzido por seus imensos escrotos. Os últimos são os tengu, entidades de origens chinesas que, aportados no Japão, passam a atuar nos bastidores de relevantes eventos históricos do país e a se imiscuir entre os monges ascetas das montanhas.

 

O futuro? Seguir com a editora, com as traduções e os cursos.

 

 


 

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